Se Freud inventou a psicanálise a partir da neurose, o trabalho com a psicose permitiu a Lacan um acesso privilegiado aos elementos da estrutura com os quais deu a devida consequência e alcance à descoberta freudiana. O sujeito como efeito do significante e como causado pelo objeto são dimensões que já operavam no trabalho de Freud, mas que não puderam ser por ele teorizadas. Lacan o fez, abordando os fenômenos da neurose para além da captura imaginária a que tinham sido reduzidos e se valendo também da clareza com que essas dimensões aparecem na psicose. Em seu ensino, tinha lugar importante a prática da apresentação de pacientes, que conduzia no Hospital de Sainte-Anne, no serviço de seu aluno e colaborador Marcel Czermak. Após a morte de Lacan, dr. Czermak manteve um ensino de psicanálise naquele hospital, fundando a Escola Psicanalítica de Sainte-Anne. Essa foi a porta de entrada de Jean-Jacques Tyszler, que hoje sustenta junto com Czermak uma prática e um ensino da psicanálise não só em Sainte-Anne como em outras instituições. Foi no âmbito de nosso endereçamento ao grupo de M. Czermak que viemos a ter a oportunidade de trabalhar com o dr. Tyszler.

A vinda de Jean-Jacques Tyszler ao Rio de Janeiro e a Niterói, em 2009, se situou no âmbito de uma transferência de trabalho mantida já há alguns anos pelo Tempo Freudiano e a Association lacanienne internationale de Paris e o grupo da Escola Psicanalítica de Sainte-Anne. Dr. Tyszler é psicanalista – membro A.M.A. – da Association lacanienne e da Escola Psicanalítica do Hospital de Sainte-Anne, psiquiatra, diretor de ensino do Hospital de Ville-Évrard e diretor médico do Centro Médico-Pedagógico da Mutuelle de l’Education Nationale de Paris. Estivera conosco em duas ocasiões, a primeira em 2003, para o colóquio A clínica psicanalítica e as novas formas do gozo, a segunda em 2006, para o colóquio A operação do significante: o nome, a imagem, o objeto (ambos publicados pela Revista Tempo Freudiano). Além disso, mantém com o Tempo Freudiano um laço permanente de trabalho como colaborador de Marcel Czermak na direção da coleção que publicamos sob o nome de A clínica da psicose – Lacan e a psiquiatria, para a qual escreve com regularidade e da qual organizou diretamente o quarto volume, sobre a pulsão.

Embora se apoie inicialmente na clínica das psicoses, as conferências que o leitor tem em mãos mostram a qualidade, o vigor e a precisão do trabalho de J.-J. Tyszler também na clínica da neurose e na clínica de adolescentes e crianças. Isso, aliás, determinou a organização da semana de trabalho de Tyszler conosco: foram programadas três sessões de trabalho respectivamente referidas às oficinas de ensino do Tempo Freudiano da clínica da neurose, de crianças e adolescentes e da psicose (as duas primeiras internas à instituição e a da psicose aberta, no Hospital de Jurujuba, em Niterói), e duas conferências abertas, uma na Universidade Federal do Rio de Janeiro, outra na Universidade Federal Fluminense.

O resultado é o conjunto de intervenções aqui reunidas.

Segundo o autor, o fio condutor dessas conferências seria a tentativa de responder à seguinte questão: o que chamamos imaginário, simbólico e real na fantasia?

O que há de marcante nestes textos?

Uma articulação teórico-clínica rigorosa em que o objeto se encontra no centro.

Essa articulação é tecida ao longo de um percurso que parte da fantasia evocada como script imaginário de onde Lacan faz surgir a categoria do objeto com suas equivalências e metamorfoses, que fazem emergir a dimensão da letra e do furo que será necessário para sustentar a clínica borromeana.

Esses temas foram declinados a partir de várias portas de entrada clínicas e tratados diante de públicos diversos: analistas, universitários e profissionais atuantes na rede de saúde mental, sem deixar, a cada vez, de sustentar um endereçamento específico.

Esse endereçamento permanente ao outro faz deste seminário carioca de Jean-Jacques Tyszler não apenas um aporte teórico instigante e atual em relação à teoria de Freud e Lacan sobre a fantasia e a relação de objeto, mas também vale como testemunho da posição do analista, não só em sua capacidade de endereçamento como em sua capacidade de receber e trabalhar com o que vem do Outro, como veremos nas discussões.

Se fosse necessário, este seminário valeria como demonstração de que, em psicanálise, não há transmissão sem transferência. E isso constitui certamente não a realidade, mas a borda de real de nossa disciplina.

Ângela Jesuíno
Fernando Tenório