Jean Jacques Tyszler

Introdução

Todo mundo pode constatar o divórcio que se acelera entre a psicanálise e a psiquiatria; esta última, ocupada completamente com as neurociências, com a genética e com a farmacologia, parece considerar pouco freqüentável uma disciplina que não adquiriu cientificidade.

Alguns entre nós se felicitam igualmente por uma separação há muito tempo esperada e perseguem o sonho de um discurso analítico enfim desembaraçado das más fadas que rodearam seu nascimento. Não compartilho do projeto de uma psicanálise de mãos brancas. A paixão da ignorância fez regredir os estudos psiquiátricos até o ponto em que se acha recalcada toda a excelente tradição clínica habitualmente chamada franco-alemã.

Não há necessidade de evocar o trajeto de Lacan no campo das psicoses e a cultura que o acompanha. As escolas analíticas, na maior parte, começaram, cada uma à sua maneira, a testemunhar essa preocupação. Podemos citar a tradução recente do livro de Bleuler, Demência precoce ou grupo das esquizofrenias.

Devemos à obstinação de Marcel Czermak a realização do colóquio sobre a síndrome de Cotard e a formidável demonstração de seu interesse atual no enquadramento da melancolia e da paranóia.

Com Clérambault, almejamos prolongar o debate sobre as psicoses passionais e retomar aquele, tão controvertido, da alucinação. Assim, o texto que se segue não é apenas uma homenagem aos avanços do Mestre: é um verdadeiro convite ao trabalho.

* * *

O Mestre da Enfermaria nos deixa, a meu ver, em dívida. Não se trata apenas de seu reconhecimento tardio e discutido; foi necessário mesmo, para Lacan, um tempo lógico para prestar homenagem àquele do qual ele fala tão calorosamente no Seminário III: “Em uma palavra, na ordem das psicoses, Clérambault permanece, absolutamente, indispensável”.

Clérambault nos coloca em dívida do lado de nossa própria inventividade clínica. Seu trabalho de decompor em equações, de formalização, de épura, nos deixa uma quantidade de descobertas sindrômicas, de referências estruturais originais, em um sentido, de objetos novos. O legado de Clérambault é, com certeza, mais ou menos corretamente, integrado ao patrimônio do campo das psicoses, mas nós ficamos quites com essa formidável renovação saudando o autor por isso?

A atopia do Mestre, seu anacrônico organicismo, não devem mascarar os espantosos primeiros passos de uma leitura estrutural, de uma leitura traço a traço. A apresentação de pacientes por Lacan em Daumezon, operava, senão na mesma perspectiva, pelo menos na mesma visada: a esperança de uma dimensão semiológica original. A filiação, nós sabemos, causa horror a alguns. É esse laço entre tradição e invenção que queremos explorar.

A paixão do clínico coloca em tensão o monólogo que o anima, mas a mecanicidade o deixa cego a respeito dos enodamentos novos: automatismo mental, erotomania, psicoses passionais, para citarmos os mais conhecidos. Seria necessário um sagrado desejo de saber. Estudaremos como a clínica opera em Clérambault sob o modo espectral, estrutural. Apontaremos a dimensão de filiação do trabalho que almejamos perseguir para além das implicações psiquiátricas. Esclareceremos, longamente, através de dois casos clínicos, a riqueza sempre renovada do fenômeno alucinatório como enodado a algumas vertentes da estrutura que aprendemos a reconhecer e a colocar em série: episódios de morte do sujeito, elementos especulares, disjunções entre voz e palavra, para ficarmos com os principais.
Chamado ao trabalho e não canonização do Mestre, pois nós podemos, certamente, prosseguir.

A clínica em operação

“Não basta mais dizer: é o paciente que faz o caso – o que é fundamentalmente exato – para pensar que se está quite, porque, sem o questionamento desse outro, o psicanalista, que faz parte do conceito do inconsciente, não há caso analítico.” (Marcel Czermark, Paixões do objeto) (1)

Clérambault é um dos raros clínicos que nos permitem captar o ir e vir permanente entre o traço de estrutura, o achado semiológico e a elaboração teórica. Várias razões podem ser associadas:

– um ensino essencialmente oral a partir da casuística; dos relatos e das conferências que conservam o caráter vivo, aberto e, até mesmo, controvertido que os manuais e outras obras de referência não permitem;

– os laudos que Clérambault redigiu, uma dezena por dia na Enfermaria Especial, nos quais se pode seguir, passo a passo, o aparecimento de novos termos e depois sua transformação em conceito em um estilo extraordinariamente pessoal para as observações clínicas. Imperatoria brevitas, como dirá Guiraud no prefácio das Obras psiquiátricas, laconismo inimitável destacando, em cada entrevista, o que faz traço do caso;

– uma posição de Mestre que seria necessário precisar melhor; Clérambault se instala mal em uma filiação de idéias; ele recusa apaixonadamente a proximidade dos trabalhos de seus predecessores desde que sinta em perigo a paternidade de suas teorias. Vivido como quase anacrônico, ele não chegará a transmitir os temas principais de suas pesquisas senão ao preço de mal-entendidos e de desprezos capitais. Clérambault é, desse ponto de vista, atópico.

Essa atopia não está apenas ligada às especificidades do modo de exercício, esse lugar de observação e de poder que constitui a Enfermaria Especial, o campo médico-legal; ela está ligada ao formidável passo dado por Clérambault para destacar as regras estruturais que nos aparecem agora, nos fenômenos descritos, como os efeitos da estrutura significante da linguagem.

Daremos disso alguns exemplos.

Três traços do caso: as estruturas delirantes decompostas em equações

Em uma comunicação de 1933 (Sobre um mecanismo automático fundamental de alguns delírios interpretativos), Clérambault isola no quadro clínico de um paciente um mecanismo singular que ele nomeia de pseudoconstatação espontânea incoercível:

Aos 35 anos, aparecimento de uma pseudoconstatação perpétua: desconhecidos fazem, de passagem, um movimento com a mão, de uma forma estereotipada, nada mais. Sem outro gesto, sem roçadura, sem mímica, sem palavras e sem ruídos de garganta. Os figurantes são incontáveis, eles se sucedem sempre novos e se antecipam ao sujeito em todo lugar…

Esse processo, precisa Clérambault, pode existir em estado puro, sobretudo no início da psicose, e persistir assim por muito tempo. “No caso citado, o gesto da mão pôde, antes, ser uma alusão tanto ao estado de flacidez quanto ao ato masturbatório. Mais tarde, o gesto persecutório seria simbólico e, por essa razão, os perseguidores se limitariam a ser manifestantes”.

Clérambault aborda aqui o tema maior do desencadeamento das psicoses por esse traço distinto nesse paciente: a pseudoconstatação como alusão.

O esquema L dá uma ilustração esclarecedora dessa referência clínica. O sujeito S é indicado sob a forma de alusão, é a “pseudoconstatação perpétua”.

O circuito se fecha nos inumeráveis pequenos outros que são a marionete frente ao paciente: os “manifestantes” ou os “figurantes”. A mensagem volta assim ao paciente quando ele fala de si mesmo como sujeito, mas sem saber o que ele diz;

clerei002

Notemos que, do ponto de vista da temporalidade, os “manifestantes” chegam antes do sujeito em todo lugar. Na alucinação bem conhecida do seminário sobre as psicoses, a alocução “eu venho do salsicheiro” pressupõe a resposta “porca”.

A formalização do automatismo mental leva G. de Clérambault a pontos de abstração que só aparecem apreensíveis com os instrumentos atuais:

as alucinações pensam… já no eco puro e simples, a transposição sintática de “eu” e “ele” é o trabalho pessoal da alucinação… cada fórmula lançada fica adquirida e o trabalho de ideação continuando, as fórmulas vão se completando de um dia para o outro; assim se forja todo um romance de origem extrapessoal: é o delírio autoconstrutivo. O delírio autoconstrutivo é mais absurdo que o delírio pessoal do sujeito. As próprias noções explicativas são freqüentemente fornecidas pelas vozes. Os neologismos são, o mais freqüente, obra das vozes. O sujeito a quem perguntamos de onde vem a palavra, e o que ela significa, nos responderá quase sempre: pergunte a elas… (2)

O que Clérambault mostra aqui, com tanta precisão, é, na psicose, esse movimento assintótico que captura o sujeito. A palavra, o significante, não se fecha por retroação em sua significação, mas permanece em suspenso, se neologiza, se enriquece, completando-se dia a dia. Sujeito e Outro são remetidos ao infinito, em um movimento combinado. Clérambault nos faz, perfeitamente, tocar com o dedo nesse trabalho do significante como trabalho xenopático, parasitário. Do outro lado da parede, a alucinação prossegue seu trabalho em nome e em lugar do sujeito, enquanto este último vê dissolver seu “eu”, degradado a um simples eco.

“Pergunte a elas!” indica uma topologia bem descrita pelo fenômeno da parede contígua. O falador, o perseguidor, está o mais próximo possível, infinitamente próximo e, ao mesmo tempo, inacessível. Os fundamentos da clínica não são, para Clérambault, estabelecidos de uma vez por todas, como uma base sobre a qual viriam se ajuntar variações e confirmações; ele os reinventa a cada vez que um novo fenômeno “aparece”. A comunicação Psicosealucinatória e práticas espíritas (1930) nos faz apreciar essa inventividade permanente. Essa comunicação continua, nas Obras psiquiátricas, o longo comentário de uma apresentação de doente – O fim de uma vidente (1920).

Clérambault terminava sua exposição do caso declarando: “Nossa doente oferece um campo de estudos inesgotável”. Ele propõe, dez anos depois, uma reflexão sobre esses delírios de início espírita em sua relação com as alucinações psicogênicas. O que faz, aqui, traço de estrutura e invenção semiológica é o termo iminência alucinatória ou alucinabilidade.

No estudo das alucinações, negligenciaram, até aqui, um fator que eu creio poder isolar sem que se possa, até nova ordem, defini-lo: é a alucinabilidade. Nenhuma alucinação, temática ou atemática, pode se produzir sem uma condição prévia, que é a iminência alucinatória. É esse estado que se intercala entre a idéia prévia, quando ela existe, e sua transposição em alucinação. Essa verdade parece ingênua; no entanto, ela é desconhecida cotidianamente. De outro lado, os dois estados da alucinação (estado virtual e estado efetivo) são, em certos doentes, distintos e estudáveis separadamente. (3)

Vemos quanto o material significante de Clérambault é rico e complexo: alucinabilidade, eco, automatismo mental, síndrome mecânica, delírio autoconstrutivo etc. Clérambault se interessa, ainda e sempre, pelo desencadeamento das psicoses; ele busca as leis gerais. Quer aproximar esse sentimento particular do limite do sentimento de realidade e do sentimento de irrealidade, sentimento de algo prestes a surgir fazendo irrupção no real.

O reagrupamento das psicoses passionais é o fruto de uma longa coleta de dados, de observações e de polêmicas teóricas que ainda não foram concluídas.

O descentramento da erotomania não deve ocultar a constatação principal: em um sentido, Clérambault fixa definitivamente para nós o quadro dessa paixão. Deste quadro, ele dá o ciframento, as constantes de estrutura. Força a pureza dele e depois declina as variantes. A leitura dos laudos e as observações clínicas deveriam aqui nos ensinar de forma útil sobre essa capacidade de tornar objetos “novos” acessíveis à análise.

Podemos ver operar, em uma observação de 21 de junho de 1921, esse incessante ir e vir entre o estabelecimento de uma ficção, o quadro puro da erotomania, e as contradições fecundas trazidas pela clínica:

Nosso caso apresenta vários traços inusitados. Antes de tudo, o objeto é uma mulher que o sujeito possuiu. Esse fato se choca com as noções clássicas do platonismo e da desigualdade social. (…)Nós demonstramos que o platonismo é um dado sem importância no quadro da erotomania… Uma coabitação de longa duração, certamente, despojou a mulher do atrativo global do mistério, mas suas recusas lhe apresentam, atualmente, uma novidade – o afastamento a repoetisa; isso é da psicologia normal. Por outro lado, a mulher ainda pode inflar o orgulho de nosso sujeito e esse é o ponto mais importante. Em segundo lugar, essa mulher é do mesmo nível social. Esse fato não impede de ter, para nosso doente, além de seu atrativo, prestígio… Ela pertence, virtualmente, à casta burguesa e lhe permitiu entrar aí pelo casamento; seu marido sente nitidamente suas inferioridades: ele não a imagina casada de novo senão com um homem rico, o homem de mãos brancas… Nosso caso entra na regra, pelo menos no espírito da regra… (4)

Os particularismos, localizados e discutidos, não invalidam o trabalho de “decomposição em equações” das formações delirantes:

essas particularidades resultam apenas das circunstâncias e delas resultam logicamente. Elas mudam a expressão do delírio, mas deixam intacta e completa a condição, tanto suficiente quanto necessária, de um delírio erotomaníaco: a convicção de polarizar em seu proveito a ideação sexual do objeto. (5)

Filiação e ruptura

É surpreendente que, quando eu fiz esse trabalho que foi publicado em 1932, eu tinha portanto 30 anos, tenha utilizado um método que não é sensivelmente distinto do que fiz depois. Se relerem minha tese, verão essa espécie de atenção dada a isso que foi o trabalho, o discurso da paciente; a atenção que eu lhe dei é algo que não se distingue daquilo que pude fazer depois. (J. Lacan, Contribuição da psicanálise à semiologia psiquiátrica (6) ).

A disciplina do Traço do caso, iniciada por M. Czermak há alguns anos, faz eco com essa reflexão de Lacan referente a seu método, à sua maneira de se orientar com os pacientes, à continuidade que lhe parece localizável desde sua tese de psiquiatria.

As apresentações de pacientes, em Daumezon, proporcionavam uma busca, anotações, observações, achados referentes à semiologia, “dimensão semiológica original”, dizia Lacan, “nesse sentido que é completamente da mesma ordem que um ou outro traço que eu pude isolar e que mereceria ocupar seu lugar na semiologia psiquiátrica, em minha tese sobre o caso Aimée”.

Nossa insistência em Clérambault se refere a essa dimensão semiológica original. De forma alguma analítica, nem mesmo psicodinâmica, mas seu modo de orientação permite, parece-nos, destacar em um paciente o que faz traço. Por que Clérambault permite essa decomposição espectral e essa análise estrutural do fenômeno psicótico?

Arrisquemo-nos às comparações provocadoras, de preferência a escolher a amnésia. O sintoma psiquiátrico tem, para nós, uma diferença radical em relação ao sintoma analítico, já que este último é entendido como metáfora de um significante inconsciente. Nossa época vê, por outro lado, acentuar-se o declínio operado na disciplina psiquiátrica; podemos pretender que as regras mínimas da observação clínica ainda sejam garantidas, permitindo nesse campo a renovação e a invenção? Não mais se encostar nessa parede contígua? Ela já está furada.

Clérambault e a técnica da entrevista: “a manobra”

“Como falamos de nos interpor, ela parece recusar, mas ao sair, como repetimos para ela nossa oferta, ela nos lança um agradecimento alegre”. (Clérambault, Apresentação de doente, 1921).

Essa notação se refere a uma paciente erotomaníaca e vemos o quanto Clérambault toma uma posição que poderia hoje parecer um empuxo ao delírio. A leitura dos artigos referentes às psicoses passionais dá indicações precisas sobre a técnica das entrevistas:

Diante de um interrogatório, podemos raramente esperar obter uma confissão formal da paixão. Não devemos mesmo pedi-la. Não devemos interrogar um delirante como sabatinamos um candidato a um diploma, pois o procedimento por perguntas e respostas tem por efeito ditar as respostas racionais e fazer o sujeito pressentir quais respostas ele deve evitar (…)

Através de um diálogo, aparentemente difuso, mas semeado de centros de atrações para as idéias, devemos conduzir o sujeito a um estado de espírito no qual ele estará prestes a monologar e a discutir; a partir daí nossa tática será de nos calar, ou de contradizer o bastante para parecer não compreender tudo (…)

Tais doentes não devem ser interrogados mas manobrados e, para manobrá-los, há apenas um único meio: emocioná-los. (Apresentação de doente, 1921, 2º caso).

Clérambault passava horas a fio a “manobrar” esses pacientes passionais, incluindo-se, assim, no quadro clínico, mas de um modo que seu olhar, seu ouvido lhe parecessem, entretanto, exteriores ao dispositivo. Ele está atrás da lupa, verdadeiro detetive do fenômeno ou do sintoma, levando o outro ao erro ou à contradição para, enfim, fazer confessar:

A erotomania consiste em uma perturbação:

1º afetiva

2º renitente

3º ligada essencialmente à atividade

Ora, nos interrogatórios, que gêneros de provas se buscam?

Provas:

1º intelectuais

2º contínuas

3º estáticas

Para conhecer tais doentes, é preciso não interrogá-los, mas manobrá-los e, para isso, agitá-los. Pode mesmo ser bom, por vezes, irritá-los… (Apresentação de doente, 1923).

Ficamos muito desconfiados ao nos surpreender diante disso que podemos entender como uma clínica de tubo de ensaio. À sua maneira, Clérambault insiste na dificuldade primeira de toda entrevista: como decompor o circuito da palavra, sobretudo quando esta tem estrutura de alucinação. Lacan obtém com dificuldade e, como uma confissão, a famosa alucinação “porca”, longamente comentada no seminário sobre as psicoses. O precipitado químico pesquisado por Clérambault me faz associar do lado do modelo eletrônico aquele do tríodo, em que Lacan convida a refletir sobre o dispositivo que permite ampliar o discurso inconsciente:

clere004

A técnica descrita por Clérambault referente aos pacientes passionais não resume a extraordinária capacidade de se tornar transparente o bastante e de uma sensibilidade tão fina à questão da voz. “Deus sabe como ele encontrou isso”, exclama Lacan no final do Seminário L’insu que sait de l’une-bévue s’aile a mourre, falando do automatismo mental. A questão do objeto determina com força o conjunto das pesquisas clínicas de G. de Clérambault. O artigo freqüentemente citado sobre a Paixão eróticados drapeados (1908) é disso um dos testemunhos perturbadores. O autor nos desvela uma voluptuosidade pouco conhecida em uma impressionante descrição das qualidades do objeto como único leme da existência e interessando, por essência, à esfera sexual.

Perseguir

No seminário citado anteriormente, L’insu que sait…, Lacan, comentando a presença de um automatismo mental em um paciente japonês, visto em apresentação, toma a seguinte posição, a priorisurpreendente: “aconselhei que lhe permitissem ficar em liberdade e que não se detivessem nisso que Clérambault inventou, um dia, um truque que se chama o automatismo mental. Isso é normal, o automatismo mental”. Nesse caso presente, Lacan insistia no gosto desse paciente pela “metalíngua”: “ou seja, que ele gozava por ter aprendido o inglês e, depois, o francês. Será que não é aí que houve o deslizamento?”

O termo deslizamento é, certamente, para ser colocado em relação com o momento da elaboração de Lacan; a insistência de que o automatismo mental desmascara nossa relação com a linguagem, sua tonalidade parasitária, essa insistência está presa no manejo dos enodamentos, no funcionamento, também, do real. “O doente fala?” – interrogava Lacan no seminário sobre as psicoses. A pergunta não cessou de persegui-lo: como a linguagem se liga ao real? Não é a primeira vez que Lacan recorre a essa via para nos chamar a atenção de que não há nada de mais natural que o automatismo mental. No seminário sobre Le Sinthome, Lacan comenta o encontro com um outro paciente, aquele “das palavras impostas”. (7)

Lacan questiona:

como é que nós todos não sentimos que as palavras das quais dependemos nos são de algum modo impostas? A questão é, antes de tudo, saber por que é que o homem normal não se apercebe de que a palavra é um parasita.

Lacan ainda se situa na borda do automatismo mental, não naquilo que ele revela e ensina da psicose, mas naquilo que ele desmascara do câncer do qual o ser humano é afligido: a palavra. No comentário desse caso clínico, visto em apresentação, Lacan nota uma distinção, uma gradação também:

Após ter tido o sentimento, um sentimento que eu considero, quanto a mim, sensato, o sentimento de palavras que lhe eram impostas, as coisas se agravaram.

E que teve o sentimento, não apenas de que as palavras lhe eram impostas, mas de que ele era afetado por aquilo que ele próprio chamava telepatia.

O paciente revela, então, uma estrutura de exposição no sentido de que todo mundo estava advertido do que ele próprio se formulava:

e o que o tornava completamente enlouquecido era o pensamento de que o que ele se fazia como reflexão a mais, a mais do que ele considerava como palavras que lhe eram impostas, era isso que era também conhecido de todos os outros.

Há, aí, também uma espécie de deslizamento. Isso tem a ver com uma revisão doutrinal? Creio, antes, que Lacan continua a interrogar as dificuldades apontadas desde o seminário sobre as psicoses referentes à alucinação, dificuldades em suma raramente trabalhadas e, no entanto, tão insistentes na clínica, aquelas mesmas que Schreber tenta teorizar em seu Complemento sobre as alucinações, distinguindo as vozes interiores do resto dos fenômenos acústicos. Tudo tem estrutura significante, mas tudo vem do mesmo lugar?

Clérambault detalhou admiravelmente esses dois grandes tipos de alucinações insistindo não apenas em sua diferença sensorial, mas também em sua diferença de relação delirante. Mas essa disjunção é para se entender em uma mesma textura, o que causa seu extremo interesse em toda a questão no tocante à localização das psicoses. Para continuarmos na clínica, tomemos o notável termo de “Eco antecipado” (Psicoses à base de automatismo, 2º artigo, 1926): “Eles encontraram antes de mim o nome das coisas”.

Parece-me suficientemente perceptível aqui essa operação referente ao simbólico presentificando esse “eles” do lado do real; vemos igualmente quanto o esquema ótico permitiria desdobrar uma subjetividade imediatamente desconcertante.

Lembremos que, para que o sujeito tenha acesso ao imaginário seguindo a ilusão do vaso invertido, é preciso que o olho que o simbolizaesteja situado no cone (ß, B’ Y ) do esquema seguinte:

clere006

 

Se for do exterior, “ele tem a ver com o real nu, ele está em outro lugar”. (8)

Com o automatismo mental, estamos sobre a borda desse campo exterior do cone que faz aparecer então uma “deformação” lógica de outra forma invisível. Cito uma breve passagem da experiência do buquê invertido no livro do professor H. Bouasse, Óptica e fotometria ditas geométricas:

na verdade, as condições do estigmatismo para a superfície total do espelho estão longe de ser realizadas. Mas pouco importa, porque o olho diafragma os feixes utilizados. Para cada posição do olho, cada ponto do objeto não envia ao olho senão um fino raio que fornece uma imagem nítida, mas deformada. O inconveniente da deformação é mínimo, um buquê não tendo uma forma a priori.

A forma duplicada ou multiplicada do objeto-voz é uma resposta na estrutura ao que é escutado sem a priori. É uma outra forma para nós de interpretar as famosas leis da cronaxia tão caras a Clérambault; a duplicação que constitui o eco é para ser situada nos espaços heterogêneos.

Esclareçamos isso pelo exemplo clínico que se segue.

Exemplo clínico

Gostaríamos de deixar em alguns traços um enodamento clínico particular, interessante, o mais próximo das indicações precedentes.

Trata-se de uma paciente, de aproximadamente 40 anos, apresentando há muitos anos, por toda cristalização psicótica, uma fundamental inadequação à linguagem assim descrita: “Sempre os mesmos sintomas: fugas, perdas, tudo se desagrega, eu regrido na linguagem intelectual… Como falar? Com qual voz?” Ou ainda: “Comigo, tudo é um problema de linguagem; eu tenho medo de que minha voz desapareça. Eu me pergunto se a voz que eu tenho é uma voz que eu me dou para imitar as vozes inteligentes”. Esses fenômenos são quase permanentes, mais ou menos acentuados, jamais ausentes.

O sujeito se eclipsa, se dissolve; a voz, objeto totalmente reestruturante; mas é sob a forma do automatismo mental que encontra resposta essa fenda no simbólico: “Eu tenho sentimentos que me falam e que me guiam: faça isso, faça aquilo… que gerem tudo e que estão ligados a essas coisas: faça isso, faça aquilo…” Elementos de saída discretos, próximos de um pensamento obsedante: “é preciso que eu me diga três vezes a mesma coisa; duvide de cada ação”. Mas é toda a marcha do discurso em direção à xenopatia que está operando: “Eu tirei o meu pulôver, de uma só vez em minha cabeça, a linguagem que eu mantinha com X, isso escapou. Eu me disse: é tornando a vestir meu colete que isso vai reaparecer”. “Paradas do pensamento, paradas da linguagem, buraco negro”.

No que se refere à experiência do buquê invertido, notamos que todos os fenômenos anteriormente descritos se aceleram, se acentuam quando o paciente é interpelado, ou simplesmente está em uma relação de palavra, de comunicação: “Eu ficava em pânico ao telefone com a idéia de que eu tinha caído na linguagem e que eu não pudesse mais falar.” Ela se isola, interrompendo todo esforço de reinserção. Isso é a voz, como lembra Marcel Czermak em Paixões do objeto, que por sua posição de comando arrasta os outros fenômenos que lhe são secundários: “não ver mais as pessoas tais quais elas são: não ver mais seus traços, o que as personaliza”.

Relação disjunta entre olhar e significação. “Eu me sinto diminuir, ficar muito pequenininha, meu físico diminui assim como eu mesma”. Ou antes: “Muitas vezes tenho a impressão de que eu vou me tornar uma mulher velha com uma voz velha”. Transformação da visão mental: “Eu não vejo mais a realidade, isso está sem brilho; isso tem menos sentido, eu tenho os olhos perdidos no vazio.”

Não estamos no pólo em que prevalece a dimensão egóica do imaginário. Aqui, fundamentalmente, falta ao eu consistência, e a luta é cotidiana para se preservar de uma dissolução terrivelmente angustiante: “Eu me defendo, mas isso se desagrega pouco a pouco”. “Eu tenho a impressão de que me dissolvo e de que desapareço”. “Eu só me mantenho em pedaços, meu ego, isso está partido”. “Como se constituiu minha cabeça, de repente isso se desconstitui e parte”.

O abismo devorador de palavras faz bascular e explodir o espelho plano. É fácil compreender as hospitalizações repetidas em um contexto descrito como “ansio-dissociativo”. Trata-se antes de verdadeiros momentos de morte do sujeito; o automatismo mental, a dissolução egóica, a ruptura do espelho plano cristalizam a forma melancólica bem conhecida: “Eu me sinto destruída; eu me sinto seja o que for tanto de corpo quanto de linguagem, isso degringola, isso desaparece, isso não existe mais”.

Neutralização concluída do sujeito que culmina em um fora da humanidade bem próximo do Cotard: “Eu não me considero mais como um ser vivo. Eu sou uma coisa esquisita. Eu me sinto um cadáver. Não há mais a noção do ser humano, para além da noção do indivíduo”. Espaço reclamando proteção para toda resposta. Zona que nos mostra um dos aspectos mais puros desse quadro clínico; não é aqui o supereu devorador que precipita essa paciente em uma morte preferida a um vivido desarticulado; é um parasita familiar, estranhamente atópico aqui: a palavra. Vozes e palavras estão disjuntas, oferecendo sua força a um enodamento clínico mais freqüente do que se possa acreditar. Não há cristalização delirante schreberiana. Nem tampouco o real do corpo se apodera de uma evanescência simbólica. Encontramo-nos, como sempre, em uma dificuldade de nomeação? Poderíamos dizer simplesmente “psicose à base de automatismo”, mas como qualificar melhor essa relação entre a voz e o eu, e como aí ligar essas precipitações cotardizadas? Nosso corpus clínico está longe de estar concluído, de estar fechado. Se Clérambault nos abre uma via, é antes esta: há que se designar outros pólos, outras arestas, outras interseções e outras configurações.

Deixei de lado, de propósito, os elementos biográficos e as notas de evolução do caso. Este trabalho faz, conseqüentemente, “traço do caso”. Deixa, no entanto, suficientemente, entender o quanto o manejo, a abordagem transferencial, as responsabilidades terapêuticas estão presos, e eticamente, à localização na estrutura.

Perseguimos ainda esse outro caso clínico que explicita toda a riqueza das concepções sobre o automatismo mental, desde os fenômenos discretos até o momento fecundo alucinatório. Ele apresenta a particularidade clássica, mas perturbadora, por não apresentar uma verdadeira arquitetura delirante. Esclarece a relação entre o olhar e a voz na irrupção dos mecanismos xenopáticos. Permite, enfim, compreender melhor como o esquema L abala e reordena as concepções da alucinação psíquica, da alucinação verbal motora e do automatismo.

Dominique é uma jovem de 23 anos, de aspecto adolescente. Ela é enviada por um apragmatismo quase total, períodos de mutismo cada vez mais longos, uma recusa a se alimentar. Apresenta-se fixada em um tipo de olhar interior, em uma lentidão impressionante dos gestos e da palavra, de momentos de fading: “A posição intimidada do peixe”, da qual falarei mais adiante. Boa escolaridade até o bacharelado “D”. Um segundo ano de arquitetura, que ela abandona. Inscrição em medicina, depois um ano na casa das irmãs, seis meses numa comunidade de Aulnay, seis meses em Roma. Inscrição no Conservatoire des Arts et Métiers, ela tem 21 anos: abandono. Encontra, nesse mesmo ano, uma seita ortodoxa. 22 anos: concurso de enfermeira. Um ano de estudos descrito como muito ruim.

Quadro clínico inicial

Esse período dura aproximadamente três meses.

Durante as primeiras semanas, Dominique, hospitalizada, manterá um mutismo quase absoluto fora das situações de entrevista. Aí, ao contrário, expressa-se com muita precisão e dor. Aborda abundantemente os temas referentes à identidade, aos pensamentos, à palavra e sua relação com Deus.

A “intuição” que a guia é o primeiro traço característico de um automatismo que se busca ainda. “No metrô, eu fiquei aturdida com os pensamentos de outro, são energias; o pensamento, isso torna uma pessoa pesada; o fato de ter uma intuição, isso a pneumatiza”.

A propósito de uma seita religiosa, da qual ela faz parte, Dominique diz: “Eu senti que eu devia entrar para ela; é uma visão global do mundo… Combater é obedecer a uma intuição, um trabalho de discernimento”. Toda melhora de sua formidável astenia psíquica é vivida por Dominique como a possibilidade decorrente desse trabalho sobre a intuição. Esse fenômeno deve ser considerado como o avesso ou a outra face da sensação de ser agida ou pensada:

“Viver nos automatismos, se lavar, comer, passear, comer, dormir: eu estou num estado soporífico… É a queda; eu não tenho mais força. As pessoas, quando elas os olham, elas lhes falam automaticamente; elas não podem se impedir de falar… Automático, é algo de universal, a fraqueza do ser. O menos pleno vai em direção ao pleno: uma relação de plenitude; eu falo pouco para conservar minha identidade.”

Essa “imiscuição dos sujeitos”, esses entre-eu onde aparecem as palavras explicitam o laço entre impasse, perplexidade, mutismo e preenchimento automático. A paciente acrescenta:

“Eu me sinto desenraizada de lá onde eu estava… As raízes, isso é construir um certo número de estruturas fixas que me ajudam e me sustentam. Por exemplo, eu devo absolutamente me lavar em uma determinada hora, isso me permite chegar justo na hora; é um quadro no qual eu evoluo. Quando não se tem estrutura fixa no interior, é preciso construir no exterior para se autodisciplinar.”

A esta barreira contra um preenchimento de um lado e a dissolução do outro, é preciso acrescentar os seguintes fenômenos: “uma emoção me toma quando me dirigem a palavra, o olhar me trespassa; é meu lado sexual que é descoberto… Eu não ouso mais olhar as pessoas; elas o sabem…”. Assim se desenha a dupla vertente do automatismo: estrutura de exposição em que a paciente é lida numa borda, enquanto na outra flutua contra o sentimento mortal de desumanização.

“A única forma de reagir que possa religá-lo à humanização que ele tende a perder é se apresentar perpetuamente no mesmo comentário do cotidiano da vida”, diz Lacan, no seminário sobre As psicoses.

A “intuição” inicia e envolve aqui o início dos fenômenos de automatismo mental:

“nesse momento, eu me escuto pensar. Eu tenho a impressão de que isso é uma voz, os outros também a escutavam. Há também as imagens que são transmitidas: da mesma forma que eu as percebia, os outros também as percebiam. Eu tomo consciência: eu me dou conta de que eu sou pensada.”

Vemos como os fenômenos passam do eco simples (eu me escuto pensar), ao pensamento difuso (os outros também…), à síndrome de influência (eu sou pensada). Puxada pela direção à característica do momento psicótico. Notamos também o quanto esse sentimento de realidade (eu tomo consciência) está de acordo com essa aparição no real dos fenômenos elementares.

Continuemos com o automatismo:

“Andando e escutando meus passos eu me fio nos barulhos, eu fixo meu pensamento no som e eu obtenho um resultado. Andando ou escutando o tiquetaque do despertador ou escutando as pessoas falarem. Eu fico perdida se me impedem de escutar: eu fico sem nada, eu não sei mais o que fazer, nem o que dizer, nem o que pensar. Eu sou escrava desses meios. A intuição me tranqüiliza, ela me reforça, torna-se como um automatismo natural. Eu coloco meu pensamento no som e isso dá um resultado positivo ou negativo. Quando se saboreia (9) o pensamento, isso é positivo.”

Essa relação enigmática entre o pensamento e o gosto transita pelo olhar: “A prova eu a vejo no olhar: o olhar é translúcido quando uma pessoa é espiritual. Eu olho sistematicamente depois de cada ação o resultado alcançado”.

Resumamos essas formulações:

– o pensamento se coloca no som.

– o som indica um valor.

– esse valor leva ou não à ação.

– dessa ação, o olhar se acha transformado se essa ação for positiva, exata, correta.

Lacan afirmava no Seminário I:

O ser humano não vê sua forma total realizada, a miragem de si mesmo… para que vocês vejam mais ou menos perfeitamente a imagem depende da inclinação do espelho plano… Nós podemos supor que a inclinação do espelho plano é comandada pela voz do outro… (10)

Essa relação entre o especular e a voz no sentido de uma dependência do especular em relação à voz toma aqui a seguinte forma: o som e as palavras se conjugam em uma redução neológica, saborear. O olhar torna-se então transparente, o espelho é vertical. Dominique encontra seu reflexo e nele se sustenta. Se o som e as palavras discordarem, o reflexo é perturbado, o olhar torna-se opaco. Dominique não tem mais de onde se dirigir, ela não tem mais para onde se dirigir. O automatismo idéico ou ideativo de Clérambault comporta essa captura do pensamento, perturbação do curso do pensamento compreendendo as variantes sutilmente descritas: pensamento estrangeiro, pensamento imposto, pensamento antecipado, pensamento pressentido, pensamento adventício… Essa captura do pensamento adquire forma desenvolvida no eco do pensamento, dobradiça entre o pequeno e o grande automatismo. O pensamento se duplicou no tempo e no espaço, a exteriorização não está longe; mas nesse tempo preciso o paciente não se sente afetado por esses fenômenos, inicialmente, não persecutórios. Para aperfeiçoar a descrição desse quadro inicial, observemos a ausência de delírio. Os temas místicos existem, mas sem arquitetura delirante.

A captura no outro sob o efeito de diálogo ou da interrogação é muito bem descrita por Dominique. Darei apenas um exemplo suficientemente esclarecedor. Dominique não pode responder às perguntas simples, às interrogações habituais e cotidianas. Da linguagem, as palavras transbordam, precipitando-a do lado do real das coisas. Essa ponte entre simbólico e real parece aqui, conforme à fragilidade de um Eu, reduzido a um lugar parasitário.

“Se eu aceito o desejo de minha mãe de comer, o perigo é neutro, eu me ligo interiormente a ela; ‘minha franguinha’ faz relação entre mim e ela, acaba-se por acreditar que se é o outro”. Esse “Eu” que tem uma natureza essencialmente fugidia encontra aqui uma dissolução paroxística. Esse “você quer comer?”, que convoca um mutismo protetor, lembra o exemplo de Lacan do capítulo “Tu és” no Seminário sobre as psicoses:

Tu és aquele que me seguirás (1)

Tu és aquele que me seguirá (2)

Os elementos não são homólogos, não é do mesmo aquele de que se trata:

(2) – implica um caráter “infalível”, uma constatação (o desejo neutro?”)

(1) – implica um mandato, uma delegação. Supõe na presença do outro algo de desenvolvido que supõe a presença.

Esse exemplo demonstra

que há outra coisa para além do Tu, que é o Ego, que sustenta o discurso daquele que me segue quando ele segue, por exemplo, minha palavra. Isso é precisamente o mais ou o menos de intensidade, o mais ou o menos de presença desse ego que decide entre as duas formas. (…) Vocês acabam de ver o quanto o Tu depende do significante como tal. A natureza e a qualidade do Tu que é chamado a responder dependem do nível do significante vociferado. É do nível do significante vociferado que depende a natureza e a qualidade do Tu que é chamado a responder. (11)

A partir desse momento, quando o significante que traz a frase falta àquela, o eu o sou que responde a vocês não pode parecer senão com uma interrogação eterna. “Tu és aquele que me… o quê? No limite, é a redução ao nível precedente: tu és aquele que me… tu é aquele que me… matas”.

Em nosso caso clínico, o Tu queres comer toma como alvo o Eu, a qualidade do Ego, as categorias do desejo e da necessidade. A redução intensificada à pura relação imaginária é indicada por “franguinha”; ela é a franguinha / no outro.

Mais tarde, Dominique dirá: “Se minha mãe me chama meu pãozinho ou minha cervinha (bichette), isso me bloqueia; se eu aceito, eu regrido ao plano de uma cervinha; eu me tomo por uma criança e ajo como tal”.

A evolução do automatismo mental

Os elementos que eu ordeno e preciso aqui foram constituídos em pouco mais de um ano desde a entrada no quadro descrito como inicial.

O termo “intuição” que Dominique utiliza envolve todos os fenômenos de eco, de automatismo e de comentários. Esse termo conota igualmente esse conhecimento direto, fora do raciocínio, fora da dialética. “Eu devo me agarrar ao menor barulho para saber onde eu estou: para comer, me é necessário o rádio, porque isso cria vozes; eu devo saber quando comer, quando não comer… Se eu perco a intuição, eu me torno alguém que não sabe aonde ir”.

À relação entre o pensamento, o som e o sabor acrescentam-se uma relação entre a cor e o som:

“há alguns dias, um novo modo de seleção dos pensamentos se instalou: é como se os pensamentos tivessem uma cor; pensamentos que dão uma impressão, é do domínio visual; eles todos têm um tom. Por exemplo ‘MAMÃE tu queres fazer isso, ou tu queres fazer aquilo…’ Eu escolho mentalmente depois eu olho se isso corresponde a meu critério de seleção. Eu a coloco no som e olho o que ela dá.”

Não se trata como tal de alucinação no sentido da alucinação psíquica ou das pseudo-alucinações de Séglas.

Essa captura do pensamento entre som e cor exprime bem esse sentimento sutil de privação (dépossession) – que antecipa o pensamento imposto, pressentido, estrangeiro. Notemos, antes de evocar o passo seguinte, que esses primeiros fenômenos são antes de tudo de procedimentos, procedimentos aos quais a paciente recorre para tentar manter sua humanidade. Se a intuição desaparece ou se embaralha, o menu de comentário dos pensamentos correntes falta: “Eu não escuto mais as diferenças de som e, sobretudo meu olhar se apaga. Eu não posso mais me dirigir. Eu me deixo morrer; eu não luto mais”.

A intuição, primeiro fenômeno do automatismo, faz barreira à dissolução. Mas notemos que esses fenômenos, em um primeiro tempo, a paciente, em um sentido, os conhece bem, no sentido do familiar. Eles fazem parte de sua existência, de seus hábitos, de suas coordenadas habituais. Eles não têm o caráter enigmático de inquietante estranheza. Dominique presta atenção a esses fenômenos, pois eles lhe são vitais; ela sabe, por outro lado, que eles lhe são absolutamente particulares. Eles seriam quase favoráveis ou, em todo caso, neutros no sentido do obrigatório (neutralidade evocada por Clérambault).

Retomemos agora o passo seguinte, aquele do automatismo idéico, do pensamento como estrangeiro. A exposição dissocia a ordem dos fenômenos, mas, para a paciente, todos esses fenômenos estão em uma mesma série, em um mesmo registro. Eles se respondem e se coordenam uns aos outros. Fato de estrutura e não compilação fenomenológica. Nós não observamos a ordem dos fenômenos; é a própria paciente que os isola e os reagrupa.

“Eu sou angustiada pela auto-sugestão que ordena meu coração a parar de bater. A cada vez, eu sou obrigada a dar contra-ordens. É do gênero ‘detenha-te meu coração… Eu quero que te detenhas…’. Como vindo do exterior de mim. É uma voz bem clara. Muitas vezes, é como se eu falasse e eu não tivesse voz.”

Evocação característica diante da televisão: “O apresentador da tv, eu lhe envio imagens de santos e de sexos; eu não estava segura, mas ele ficava perturbado, eu tenho o sentimento de me duplicar”. O pensamento se exterioriza, se desdobra, se difunde. A sensação de não-pertencimento experimentada pelo sujeito é nítida. A tonalidade se torna mais persecutória. Notemos, aliás, que se conjugam fenômenos visuais que parecem tomados sob o comando depreciativo dos fenômenos idéicos: “Muitas vezes, eu vejo uma mão segurando uma faca e que vai cravá-la em meu coração; como uma imagem transparente, que vai embora quando eu digo ‘Retira-te Satanás…’.” Assim como as ordens e as contra-ordens sobre o coração podem permitir evocar aqui o estatuto da alucinação verbal motora, tanto quanto os longos períodos de preces, aos quais Dominique se impõe, precipitam freqüentemente os fenômenos; ela articula provavelmente, escuta como eco pensamentos parasitas, enuncia fórmulas ritualizadas. Seu pensamento a tiraniza, ela é mais falada do que fala, é mais pensada do que pensa. Baillarger já tinha constatado que alguns pacientes não pretendiam realmente ouvir vozes, mas antes sentir falar uma voz. Lacan insiste muito na descoberta de Séglas, reconhecendo que, por vezes, é o próprio paciente que fala na alucinação, ele mexe os lábios.

Séglas liga, logicamente, o sentimento de duplicação ao colapso emissor-receptor do esquema linear da comunicação. Uma observação muito simples domina, nos diz Lacan, toda a questão da alucinação piscomotora verbal: “parecem se esquecer de que na palavra humana o emissor é ao mesmo tempo um receptor…”

O famoso esquema L se opõe ao esquema linear, lingüístico, aliás, da comunicação. É o esquema L que faz valer que é o eu do sujeito que fala normalmente a um outro e do sujeito, do sujeito S, na terceira pessoa.

clere008

 

Aristóteles dizia: “O homem pensa com sua alma”. Para Lacan, o sujeito se fala com seu eu. A explicitação desse fenômeno tornou-se possível precisamente pela alucinação verbal: “O sujeito fala literalmente com seu eu e é como se um terceiro, seu duplo, falasse, comentasse sua atividade”.

É preciso notar aqui que essa configuração, que nos mostra um sujeito completamente identificado a seu eu com o qual ele fala, não implica a idéia de um Outro excluído como tal (fórmula freqüentemente caricatural que damos dessa regressão tópica sobre o eixo imaginário). A relação ao Outro não pode ser declarada recoberta unicamente pelo processo da relação imaginária sob as formas da alusão, de intrusão, de comentário, de difusão.

Dominique mantém uma atividade de pintura, e sustenta também uma demanda de reconhecimento quanto a essa atividade: ela quer ser julgada como todo mundo. A oportunidade de um exame em que ela apresenta seus trabalhos a coloca em posição de responder, de dar provas, de ter peso e diante de um professor, de um juiz, de um grande Outro.

Sob o olhar e o questionamento do grande Outro, Dominique se reduz, se sidera; e um sentimento mortal a invade; ela é aspirada pelos vagões do metrô, pensa várias vezes em se atirar debaixo dele. Ela é fascinada pela idéia de furar os olhos.

Diante da pergunta do grande Outro emerge algo que remete à neutralização do sujeito (lembremo-nos também do mutismo inaugural). Eu creio que os registros são diferenciáveis, embora, evidentemente, ligados: aniquilamento produzido pela forçagem do grande Outro, fenômenos familiares, quer dizer, aniquilantes do automatismo – dois registros complementares articulando uma degradação narcísica permanente.

Antes de abordar o momento fecundo dessa evolução, vejamos como a própria paciente distingue os diferentes fenômenos sob a denominação geral de pensamentos:

– há a inspiração, pensamento simples, doce e luminoso.

– a intuição, algo que me guia em tudo o que eu faço, que me diz as palavras que eu devo dizer.

– as palavras interiores: “vozes exteriores a mim que me falam, visivelmente não minha voz. Palavras distintas que eu não posso censurar”.

Aos fenômenos acima citados, acrescentem-se aí os esclarecimentos e luminosidade do “sentido visual” e visões das quais falaremos mais adiante, a sensação de uma presença.

Concluirei rapidamente pelo momento fecundo que necessitaria de desenvolvimentos históricos e biográficos importantes. Indicarei, no entanto, o futuro das linhas de forças anteriormente citadas e que encontram então seu extremo desenrolar. Conjugam-se nesse momento fecundo diálogos alucinatórios, fenômenos visuais e eclosão delirante mística, sobre a qual eu farei pouco comentário. Nos diálogos alucinatórios, durante, aproximadamente, quatro semanas com a mesma intensidade, nós pudemos localizar:

Do lado das vozes:

– a voz de Jesus, muito profunda, ressonante e grave,

– uma voz interior que canta, atribuída ao Espírito Santo,

– uma voz feminina, a de Maria,

– a voz de Laurent, o primo morto, do qual ela reconhece o sotaque, voz se exprimindo, alternadamente, em inglês e em francês,

– risos satânicos em certos cômodos no momento da prece: “impressão insegura de um riso obscuro e vertiginoso”, ela diz.

Os fenômenos automáticos permanecem durante essa invasão alucinatória e são distintos como tais: “vozes interiores, frases impulsivas”, diz a paciente, ou ainda “pensamentos saltitantes”. As preces a falam: “uma Ave Maria – voz interior que pronuncia sem a ajuda da vontade – vem das profundezas”, “voz interior verificada como, sobretudo, do coração”, “uma voz parece dizer a hora de Satanás”.

Os fenômenos visuais, os fenômenos de olhar são múltiplos, sempre associados aos fenômenos de palavras: rosto do Santo Sudário, visões de pombas, rosto de Santa Teresa, cabeça de Jesus coroada de espinhos etc., “um olhar azul me olha… impressão de um vazio obscuro… visão de um sexo de homem”.

A sensação de uma presença se liga aos fenômenos cenestésicos: “sensação de uma presença que sai de mim, depois, de dois olhos, de um olhar e de um olhar de fogo”. “Calor no coração, ardente, que se espalha por todo o corpo”. “Uma presença parece sair de mim como um duplicação que se assenta em cima da escrivaninha diante de mim.”

Séglas já notava como a alucinação era, ela própria, um verdadeiro delírio. Lacan retomou essa concepção homogênea do fenômeno alucinatório como um fenômeno delirante. Nessa eclosão alucinatória se acha, certamente, colocada toda a proximidade de estrutura entre alucinação e delírio. Dominique, simplesmente, se deu conta disso, dizendo que se tratava de uma provação, provação indicando que ela estava designada para uma santificação, ou, antes, uma verdadeira canonização.

Assim, pode-se melhor ouvir a homofonia com loucura racional (folie raisonnante); os fenômenos alucinatórios já têm toda a estrutura irredutível do delírio. O momento fecundo se dissipará em algumas semanas, dando lugar aos fenômenos a partir desse momento estáveis e permanentes do automatismo. A riqueza e a progressão dos mecanismos xenopáticos permitem também captar a categoria da voz tomada como objeto, objeto a, objeto caído do órgão da palavra. Uma partição dos fenômenos seria possível a partir dessa disjunção entre voz e palavras:

– em um pólo fenômenos de palavras, fenômenos articulados, mas no limite sem voz: as ordens dirigidas ao coração.

– em outro, uma ausência de palavras, mas uma encarnação da voz: o riso satânico, o canto do Espírito Santo.

Se retornarmos ao esquema L, precisaria fazer valer as categorias diferentes evocadas:

– alucinações envozadas: alucinações acústico-verbais clássicas do momento fecundo, recaindo nelas toda estrutura do delírio,

– alucinações não envozadas recobrindo a alucinação psíquica e os fenômenos do automatismo. A mensagem não parece ser ouvida na mesma relação com a presença egóica, a intensidade do Ego. Uma forma aparentemente direta assinala a alucinação nesse sentimento de uma realidade nova fazendo irrupção no mundo exterior.

A segunda forma é mais problemática, primeira na evolução, onde a difração perpétua do pensamento põe o sujeito à prova de sua consistência egóica e de sua inclusão no discurso (corpo opaco do objeto).

Nossos dois exemplos clínicos têm o mérito de indicar o quanto podemos prosseguir com Clérambault e após Clérambault.

O que Marcel Czermak chama de “desdobramento da estrutura” é particularmente esclarecedor através desses casos em que se deixam captar os fenômenos de conjunção e de disjunção entre voz e palavra, alucinação e fenômenos escópicos, voz pura e comentários etc. Escolhemos esclarecer o automatismo mental. Do lado das psicoses passionais, as descobertas estão ao alcance da mão e, da erotomania ao transexualismo, uma leitura renovada se impõe, interrogando o lugar do postulado da inércia do discurso, das especificidades segundo os sexos, das particularidades da transferência.

Para concluir

“Atualmente, é possível que o que eu sei por um saber geral, eu não saiba em sua aplicação particular… Por exemplo:

Eu sei curar absolutamente todo homem que tem febre.

Mas eu ignoro se esse homem tem febre.”

(Aristóteles, A grande moral)

Nós não falamos de Clérambault para inscrevê-lo na história do movimento das idéias ou dos conceitos psiquiátricos.

O essencial dessa pretensa história a cada vez escapa: os quarto de giros, as ultrapassagens, as reversões topológicas, e, mais ainda, os objetos novos recortados em um real de outra forma desesperadamente estéril.

Pensamos que a psicanálise não pode virar as costas para a exigência de uma clínica tão resoluta, partindo certamente da Alíngua e dos instrumentos deixados por Lacan, mas revisitando as elaborações daqueles que não se furtaram ao seu dever de transmissão.

_____________________________________-

* Publicado em Le Discours Psychanalytique nº 11, fevereiro de 1994 – Revue de l’Association freudienne internationale, Paris.
1 Paixões do objeto. São Paulo, Artmed, 1991.
2 CLÉRAMBAULT, O delírio auto-construtivo, 1934.
3 CLÉRAMBAULT, Psicose alucinatória e práticas espíritas, 1930.
4 CLÉRAMBAULT, Apresentação de doente, 1921.
5 Ibid.
6 Boletim da Associação Freudiana n o 21.
7 Publicado em Discours Psychanalytique nº 7, “O homem das palavras impostas”, com comentários de Marcel Czermak.
8 Cf. Ensaios sobre a topologia lacaniana, de Marc Darmon.
9 N.T. – “Quando se saboreia o pensamento”: O verbo empregado pela paciente é goûter à, que significa provar algum alimento, experimentar uma comida ou uma bebida pela primeira vez ou para verificar se está em bom estado etc.
10 LACAN, J. Os escritos técnicos de Freud, Jorge Zahar Editor.
11 LACAN, J. Seminário As psicoses, lição de 13/06/1956.

Tradução de Luíza Ribeiro
Revisão de Anna Carolina Lo Bianco