Esse título é irônico e sério ao mesmo tempo. Pois sabe Deus que a questão do ser, ou seja, o que numa determinada espécie é comum entre todos os entes, apesar da sua diversidade, é desde Aristóteles cara aos filósofos. A preocupação deles é, certamente, a de desembocar numa ética e, portanto, naquilo que convém, a cada um dos entes, cumprir para realizar seu ser.

De maneira perfeitamente imprevisível, a questão ressurge entre os psicanalistas, em termos diferentes, mas num ponto não menos decisivo.

Entre os entes tão diferentes que eles manifestam, existe um traço comum que permita imediatamente autenticar sua respectiva qualidade?

O mínimo que se pode dizer é que ele não é evidente: veremos que é justamente o que faz problema.

Com efeito, não poderíamos nos remeter ao saber exibido: o manejo dos textos está ao alcance de qualquer universitário.

Não podemos confiar na qualidade das interpretações relatadas em congressos, pois o que conta é antes o seu manejo e a sua oportunidade.

Não se pode julgar pelo tempo da análise pessoal nem pelo renome do didata: a resistência à análise ignora o tempo e despreza a autoridade.

Não podemos nos remeter ao carisma de tal ou qual, nem a seu apetite pelo poder.

O talento para seduzir tampouco é uma garantia.

Então, o quê? Apresentar as questões dessa maneira é simplesmente lembrar o embaraço de todos os júris que tiveram que julgar a qualidade de analista. Por ter participado, Lacan regnante,do júri do passe, posso dizer do mal-estar que me deixou uma experiência, que em seguida foi preciso interromper pela constatação do seu fracasso – foi Lacan quem o disse.

Fracasso por quê? Porque, segundo as regras próprias a qualquer sociedade humana, seus membros aspiram, de acordo com a tradição, a exigir a entrega do traço um, que legitima o pertencimento. A dificuldade é que, no caso dos analistas, a posse desse traço um não deveria mais desencadear a menor paixão, antes o embaraço. Para os candidatos ao júri do passe, o procedimento desencadeou, mais do que uma paixão, um delírio. Resumindo, o procedimento do passe vinha na contramão daquilo que o tratamento talvez tivesse podido, de sua parte, estabelecer.

Então, como fazer? É certo que em suas reuniões os analistas escutam quem, entre os seus, é, e quem não é. Mas não é raro que esse êxito lhes pareça antipático na sua organização social e que prefiram coroar o saber livresco, a pose, a habilidade política, a vontade carismática etc.: esses traços parecem poder ser aprendidos, transmitidos, ensinados… Mas como adquirir aquilo que é não mais um significante, mas o manejo de um significado? Na medida em que esse significado, se ele permanece sexual conforme o costume, é para, no nosso caso, se ver posto entre parênteses.1

A dificuldade para reconhecer ou diplomar um analista é, seguramente, que ele não se distingue por um traço evidente.

Mas, então, qual pode ser, portanto, o ser daquele que denuncia o semblant das representações, senão o conjunto vazio? Aquele, precisamente, que o logotipo de nossa Associação coloca no cerne de sua união.

Eis aí o retorno dos niilismos, objetarão. Certamente não, se é verdade que é o desejo o que esse nada mantém, delegando a função de valer como sua causa aos resíduos ali evacuados pelo funcionamento do significante.

E – observem a sutileza de Lacan – a marca da relação ao objeto a não é o traço um (esse traço fálico cobiçado pelo candidato), mas a falha, a barra que divide o sujeito, justamente quando ele esperava uma unidade de concreto armado.

Lacan tinha esta fórmula curiosa: não há analistas, ele dizia, mas analista.2 Em outras palavras, os analistas não formam uma união de indivíduos, mas de objetos não especularizáveis e não quantificáveis, com essa particularidade física de se repelirem mutuamente, como ouriços.

Estranha estrutura que, no entanto, é nossa casa.

Charles Melman
Paris, Dezembro de 2007.

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Texto inédito, escrito para o livro A prática psicanalítica hoje – conferências (Tempo Freudiano, 2008).
1 N.T.– No original, mis en abyme: “posto em abismo”. Uma estrutura “em abismo” é a que se vê no filme dentro do filme, na peça dentro da peça, no romance dentro do romance. A expressão “em abismo” existe em português, no sentido mencionado, mas seu uso é mais erudito do que em francês.
2 N.T. – No original, il n’y a pas des analystes, disait-il, mais de l’analyste. O uso do “de” partitivo não existe em português e ordinariamente se refere a coisas que são parte de um todo que não pode ser contado, como acontece, por exemplo, em português, com “manteiga”, da qual não se diz “tem manteigas”, mas sim “tem manteiga”.