— Máxima ética da psicanálise

Bruxelas, 28 de agosto de 1988

Ao me pedir para intervir, por ocasião dessa semana, nossos amigos belgas me deram, de algum modo, liberdade de palavra, e vou começar, se vocês concordarem, por uma breve interrogação sobre o que é a liberdade de palavra; pois, afinal, a palavra é seguramente um ato eminentemente ético, pois ela provoca imediatamente no ouvinte essa avaliação do quanto de desejo que pode se achar aí engajado. Como vocês sabem, isso chega, aliás muito legitimamente, ao ponto de a liberdade de palavra se confundir com direitos do homem, o que, por outro lado, poderia parecer surpreendente, quando se sabe que, afinal, a liberdade de palavra pode consistir, como é o caso freqüentemente para todos nós, em dizer mais ou menos qualquer coisa.

No que me diz respeito, aqui e agora, qual é, por exemplo, minha liberdade de palavra? Qual é, de saída, esse tipo de julgamento ético que eu arrisco suscitar sobre o que vou tentar contar? Como vocês sentem imediatamente, essa liberdade de palavra é limitada pelo quê? Ela é limitada, aliás sempre, qualquer que seja o auditório ao qual nos endereçamos, pelo grau de recalque que lhe atribuímos – que lhe atribuímos ou que conhecemos, isso não tem importância – ou que imaginamos, talvez às vezes erradamente, é claro. Mas é bem evidente que, se por imprudência eu pretendesse não levar isso em conta, é certo que eu me colocaria na via do despudor, do húbris, ou me colocaria nesse risco do qual às vezes gostamos bem, que é o de se manter incompreendido. Como vocês sabem, esse era freqüentemente o caso de Lacan, que era lúbrico e incompreendido, os dois ao mesmo tempo.

Observem o que isso quer dizer. Esse tipo de situação é uma ilustração do seguinte: é que é justamente de vocês que eu recebo minha própria mensagem de forma invertida. Fórmula muito feliz e que, a meu ver, e eu lamento, não foi levada a seu extremo, porque, se a aprofundamos um pouquinho mais, isso quer dizer que, na medida em que é de vocês que recebo minha própria mensagem, o que posso dizer, pois bem, por causa disso, o recalque de vocês se torna seguramente o meu, não somente na palavra, mas, conseqüentemente, obrigatoriamente, no pensamento, e esse é o pequeno passo a mais que eu gostaria de dar, é que meu inconsciente se torna o de vocês e, para dizer a verdade, é o caso comum. É isso que permitiu a Lacan lançar a fórmula lapidar “o inconsciente é o social”,fórmula que, de outra maneira, poderia parecer estranha.

Por que isso pode nos interessar, nesses problemas éticos? Porque, se o que proponho é exato, isso quer dizer que o que há em mim de mais particular, meu recalque, o que me constitui em minha especificidade mais íntima, é também o que me constitui em minha subjetividade, o que me faz ex-sistir, é o que eu partilho com cada um, quer dizer que minha particularidade, sem por isso se resumir ou estar ligada ao que seria meu indivíduo – já que se trata de minha particularidade –, é também o que faz com que sejamos, uns e outros, a esse respeito, no que nos parece mais específico, sejamos quase, exceto pelo significante – o que não é negligenciável, pois cada um tem os seus –, quase idênticos.

Isso para responder logo a uma aporia relativa à ética em psicanálise, ou seja, a de saber como é que poderíamos pretender um julgamento que valeria para cada um, não digo universalmente, não falo de universo; mas, em todo caso, como é que poderíamos legitimamente supor um julgamento que valeria para cada um, sem por isso tratá-lo como um indivíduo, ou seja, membro de uma coletividade, de um grupo qualquer, mas, ao contrário, se endereçar a ele, interrogá-lo naquilo que é sua particularidade.

Devo lhes dizer também que, me pedindo uma conferência sobre esse assunto, nossos amigos belgas manifestaram uma confiança que eu espero poder honrar, sem que isso, no entanto, seja muito fácil para mim. Quero dizer que, no que me diz respeito, não tenho inclinação espontânea no que tange aos problemas éticos, e vou logo lhes dizer o porquê, e aí ainda a observação só valerá porque interessa a muitos outros além de mim. Acontece que, com efeito, pelas circunstâncias que são as que cada um de nós encontra ao nascer, não venho de uma tradição educativa religiosa. Isso quer dizer o quê? O que é que isso introduz como tipo de problemas? A maneira como vou introduzi-los aqui, não sei como ela será percebida por vocês, entendida e até mesmo tolerada, mas em todo caso, vou tentar, pois é bem evidente que nesse campo, o da ética, tocamos obrigatoriamente as fronteiras do que para cada um é o mais sensível, o mais íntimo, como eu dizia há pouco.

A inteligência da religião, e em particular da religião católica, é ter situado de saída que o sujeito não podia cumprir a lei moral. Quero dizer que, a priori, ele era perdoado, e até mesmo a rigor amado, por estar em falta, apesar de sua boa vontade, com a lei moral. A ponto, como sabemos, de isso ter podido levar a essa espécie de limite extremo, resumido nessa outra fórmula lapidar: “Vocês nunca exaltarão tanto o amor de Deus quanto pecando intensamente”. Que maneira melhor de pô-lo à prova e de incitá-lo? Um dos efeitos dessa posição é o de introduzir, sem que evidentemente isso seja, de modo algum, o objetivo almejado, introduzir inevitavelmente isso que eu me permitirei chamar de uma erótica, ou seja, esse movimento em direção a esse objeto de que tanto falamos por ocasião dessas jornadas, das Ding, que evidentemente retomarei, se vocês permitirem, mesmo que seja uma erótica père-versamente1orientada, como sublinha Lacan. E tudo isso até o ponto de poder ser dito, articulado, que, afinal, o próprio pecador, ele também, servia aos interesses de Deus, mesmo a sua revelia.

Quando se trata de uma educação que se refere a uma referência racionalista, como é a maior parte das morais leigas, o efeito é de ordem totalmente diferente, pois fica bem evidente que, tanto quanto no caso anterior, não se trata de que o sujeito possa eventualmente cumprir a lei moral. Mas o problema é que a falta em que ele se encontra em relação a ela não tem a ver, de forma alguma, com a “felix culpa”; tem a ver com aquilo que, no melhor dos casos, é simplesmente o erro, ou com o que, em certos casos, pode ser a exclusão, mas – e talvez seja este o ponto no qual quero insistir – a única erótica na qual essa lei moral engaja, na medida em que ela não se funda de modo algum nessa articulação com um objeto, com um das Ding qualquer, mas só pode se apoiar, de alguma forma, em seu próprio enunciado, enunciado que, como sabemos, não se articula em nenhum lugar, trata-se aí de morais que nunca são reveladas, que só se sustentam em seu próprio enunciado, em nenhuma enunciação, nesse caso é difícil incriminar um enunciador qualquer, acusá-lo de ser mau, de não querer o bem de sua criatura e, portanto, a única erótica na qual tal sujeito se acha engajado é a do masoquismo, que é inerente, eu diria, ao próprio exercício desse enunciado, ou seja, a esse efeito de poder do simbólico. É o que explica por que, por exemplo, no que me concerne, não sou espontaneamente voltado para os problemas éticos. Quero dizer que não se trata de modo algum de problema de escolha, mas se trata do seguinte: é que o trabalho do pensamento, como vocês leram no Entwurf, no Projeto de Freud, é forçosamente dirigido pela tentativa de reproduzir os caminhos que conduziram a esse objeto, a esse das Ding, e quando esse objeto falta, quando acontece que a moral na qual nos sustentamos se vê privada desse suporte, dessa justificativa, dessa recompensa se quiserem, pois bem, acontece que, por seu próprio movimento, o pensamento não é tentado a trilhar o nível de reflexões, reflexões que não lhe dariam, que não poderiam valer pelo menos a esperança de uma sobremesa.

O problema – não sei se é necessário precisá-lo aqui –, o problema aqui não pode de modo algum se apresentar no registro do que seria benéfico, do que seria vantajoso, de um lado ou de outro, não é absolutamente isso; o que tento fazer, tento simplesmente evocar todo um aspecto desse seminário, que será, por exemplo, o que Lacan introduzirá com a moral kantiana, ou ainda, justamente, com o efeito produzido pela ciência sobre o que são hoje nossas dificuldades éticas, ou seja, de que maneira o próprio movimento da ciência, na medida em que ela é o poder do simbólico, que disporia de um poder pleno sobre o real, pois bem, ela vem infalivelmente repercutir em nossos problemas éticos e modificar, como vocês sabem, tumultuar nossos comportamentos éticos. Não vou entrar em todos esses problemas contemporâneos que estão aí e sobre os quais temos tanta dificuldade para optar, para saber como nos decidir, problemas que são puramente introduzidos pela maneira como a ciência resolve os obstáculos que o real lhe opõe.

Esse seminário sobre a ética – tive a oportunidade de fazer essa observação ao longo dessas jornadas – é fundado numa mecânica extremamente simples, eu diria rudimentar, diria trivial; e, uma vez que vocês a tenham na mão, vocês têm o resto todo, ou seja, o que lhe dá estofo, o que o ilustra, o que mostra suas aplicações, e tentarei lhes mostrar de passagem algumas delas.

Qual é esse mecanismo, que é inteiramente original e próprio à descoberta freudiana, ou à invenção freudiana, como se queira, pois ela é inteiramente retomada por Lacan, do Projeto, do Entwurf? Quero lhes dizer, o Entwurf é um texto que, quando fui ler, me fez rir. Mas – eventualmente lhes direi por quê –, ele merece mais do que essa primeira reação. Ele diz o quê? Ele diz o seguinte: que podemos perfeitamente reconstruir no ser falante – ser falante, aquele que está submetido aos efeitos da linguagem, e que se encontra desnaturado pela linguagem, ou seja, que não tem mais relação natural nem consigo mesmo, nem com o mundo, e menos ainda com as funções que chamamos de reprodução, ou seja, a sexualidade. É o animal desnaturado, não há mais nada nele que, de alguma forma, venha guiá-lo de forma simples, imediatamente, na direção de seu parceiro, e que organize, de forma tão simples quanto na vida animal, sua vida sexual. É com isso que lidamos. Bom. Pois bem, é possível reconstruir no ser falante esse momento fundador, original; então, evidentemente, como ele é original, o sujeito não está lá, não pode narrá-lo, já que é um efeito dele. Mas podemos reconstruí-lo, justamente por sua economia psíquica, esse momento em que, para a criança, emerge, nasce esse sol repentino, essa chama que Lacan chama de das Ding, retomando-a da maneira como Freud a introduz, maneira que não é inteiramente equivalente, mas isso não tem importância. Lacan acabou fazendo uma tradução correta desse das Ding, em francês, chamando-o de l’achose.2 Na medida em que o efeito do simbólico, desses significantes que nunca fazem senão remeter cada um a si mesmo, na medida em que o simbólico é o que estabelece um real, ou seja, justamente o que resiste, sempre irredutivelmente, ao poder do significante, isso de que o significante, apesar da capacidade de desenvolvimento da ciência, não poderá, não pode dar cabo: haverá sempre, forçosamente, pelo fato da natureza do significante, um real, ou seja, o que faz obstáculo, o que se apresenta, então, com uma consistência, e que resiste, mesmo se ele padece do significante, como é dito no seminário. Pois bem, esse momento de nascimento, que se pode reconstruir no falasser, é aquele em que, nesse real, se produz o que se pode isolar topologicamente, por razões de topologia, como um furo. E vocês têm, ao longo de todo o seminário, esse exemplo do vaso, desse vaso que Lacan, como vocês sabem, compara com o pote de mostarda, na medida em que ele estaria sempre sem mostarda, mas na medida em que talvez ele seja suficiente, afinal, uma vez posto na mesa, para provocar apetite no sujeito, é a partir daí que ele tem apetência; ou seja, o pote, o vaso, não faz senão cernir esse vazio que, a partir desse momento, nesse pote, vai poder se encher, e se enche naturalmente para cada um de nós, com todas as beberagens ou com todos os licores que se possa querer escolher ou que se pode escolher etc.

Quer dizer que com o estabelecimento, a emergência, da acoisa, conseqüentemente se organiza o falasser, o mundo das representações, o mundo do semblant, o mundo das aparências, e ele mesmo se vê, enquanto sujeito, ex-sistir, posto nessa posição de exílio no real, por que não, onde sua ex-sistência – e é aí que giramos em torno de um ponto clínico essencial – só se sustenta no fato de que a acoisa falta. Ele só se sustenta, o sujeito, nessa falta a ser, e tudo isso que vemos se produzir é o que, de algum modo, para a criança, vem fornecer história, ou mito, como se queira, para essa organização da acoisa; por exemplo, o mito de Édipo é evidentemente o que dá a essa acoisa, que não é imaginarizável, ou seja, que não tem nenhum traço que se possa especificamente lhe dar, o que faz com que, para cada um de nós, o mundo das representações, pois bem, comumente, no caso mais habitual, como sabemos, seja a mãe, a imagem da mãe, que vem a um só tempo sustentar, servir de suporte para essa acoisa, e vocês sabem como o mito organiza o que é, o que deve ser, com fins normativos, ou seja, de constituição do mundo e da existência, a perda dessa acoisa. O que isso quer dizer, a perda? Aí também fizemos algumas observações a respeito. Como é que se pode perder um furo? Pois bem, só é perdido porque o que brilhou ali, nesse instante original, só brilhou, de algum modo, para, em conseqüência, constituir o mundo das aparências, o mundo das representações, e fazer com que nossa economia, até mesmo nossa objetividade, só possa subsistir num distanciamento em relação a essa acoisa. Ao retomar o Entwurf, vocês vêem de que modo a economia psíquica se acha organizada por esse duplo princípio: por um lado, o princípio do prazer, ou seja, a tentativa de fazer ressurgir, de se defender contra essa acoisa, eu diria, permitindo ao mesmo tempo o nível de tensão psíquica mais baixo, e ao mesmo tempo sua presença numa forma alucinatória, ao passo que o processo descrito como secundário por Freud vai ser a busca, pelos processos de pensamento, do encaminhamento, que permitiria encontrar essa acoisa.

Em que é que isso concerne à ética? Isso concerne à ética, e está aí, eu diria, o caráter propriamente dito extraordinário desse seminário, pois isso nunca fora articulado antes, mas acabarão se dando conta, é preciso tempo, nunca se pode saber quanto. O editor me disse que tinham sido vendidos doze mil, ou seja, há uma diminuição regular na venda dos seminários, não me interrogarei sobre o fato de saber por quê, mas esse é, em todo caso, no registro do que nos concerne a todos, quer se queira ou não, o da ética, sempre um dos livros mais novos e um livro capaz de intervir como nunca nenhuma ética pôde intervir, e por quê? Ora, porque, como lembra Lacan, as éticas são sempre organizadas pela busca do bem do sujeito, ou seja, pela suposição de que existe um bem, o bem soberano, por exemplo, e que bastaria situá-lo, colocá-lo em seu lugar para que, a partir de então, uns e outros estejamos no bem. Há evidentemente outras maneiras de se organizar, por exemplo, há éticas que são éticas da apatia, da insensibilidade, que fazem com que se deva agüentar firme e ponto final, não há que se atormentar, é preciso suportar tudo o que acontece. Direi daqui a pouco uma palavra sobre isso também.

Mas, em todo caso, todas as éticas são forçosamente organizadas em cima da idéia de que há um bem possível, universal. O que Lacan mostra, com essa pequena economia tão rudimentar que evoquei muito rapidamente há pouco, é que esse objeto, das Ding, que é para nós o suporte do bem, ou seja, o que queremos, o que buscamos, aquilo cujo ressurgimento parece que esperamos, em nossa economia, é também aquilo de que fugimos da melhor maneira que podemos; quer dizer que nos mantemos sempre a uma certa distância disso, porque nossa economia psíquica não suporta uma proximidade grande demais, e se eventualmente vier a emergir para um sujeito em sua vida psíquica – pois é um acidente que se produz – o que é para ele, em sua vida psíquica, a representação exata dessa acoisa, a representação original, aquela que ele não conhece forçosamente, isso é para ele a emergência da angústia. Ou seja, nossa economia é feita de tal modo que o objeto fonte do bem é o mesmo que é a fonte do pior. Há, a esse propósito, para todos que nos interessamos pela clínica, todas as observações de Lacan relativas à teoria kleiniana, inteiramente organizada em torno desse fato clínico, dessa experiência clínica, que faz com que, para a criança, o bom objeto intramaterno seja também o objeto mais ameaçador: o bom, aí, não é separável do pior.

Isso quer dizer que, para cada um de nós, a experiência moral, como vocês sabem, é inevitavelmente uma experiência conflituosa, primeiramente porque, como diz Lacan, ela vai contra o princípio do prazer: quando supostamente ela nos traria um apaziguamento, justamente, ela é o que vem atormentar… Se vocês estão um pouco sonolentos demais, um pouco à vontade demais com as suas coisas, ela é o que vem eventualmente, assim, relançá-los. E ainda, por outro lado, experiência conflituosa, pois ela guia para a busca desse objeto que, não apenas lhes é interditado, interditado pelos mitos organizadores de sua subjetividade, mas além disso lhes traria o pior. E é por isso que Lacan observará também que um voto se apresenta necessariamente com esse aspecto contraditório: ele procura sobretudo evitar sua eventual realização; é preciso que ela continue sendo um voto, um voto no ar, que se mantenha como tal. Na Escola Freudiana, era usual comentar, sempre abrir espaço para o Sonho da bela açougueira. Mas o Sonho da bela açougueira somos todos nós, esta sala está cheia de belas açougueiras! Eu diria que não é a prática de nenhum sujeito almejar que seu voto nunca seja realizado. Mas isso não o impedirá, e é também uma outra fórmula de Lacan, ao dizer, por exemplo, que o que o neurótico quer é o inferno; é o que lhe falta, que ele nunca está suficientemente nele, que ele gostaria que fosse sempre um pouco mais quente!

Eu apresento isso a vocês de forma um pouquinho caricatural para evitar o que nunca deixa, de alguma forma, quando se fala de ética, de tomar dimensões sempre apocalípticas, cosmológicas etc. Há, nesse seminário, observações que, inevitavelmente, vão um pouco nesse sentido, mas afinal basta nos atermos à nossa experiência, ao que é nossa pequena experiência, mesmo privada, de cada um.

Então, a partir daí, vocês têm todo o resto do seminário: o fato, então, de que, se vivemos num mundo de aparências, de representações, é bem claro que cada um de nós é sensível a sua artificialidade, evidentemente. Ou seja, que desde então estamos forçosamente na mentira. Na mentira, uma vez que eu me afirmo isso que eu sou, e aí aquela à qual eu me endereço, como é que ela não seria a que deve ser? Há, portanto, em nossa vida, permanentemente, o que é efetivamente vivido por nós no registro do pecado, da falta, ou seja, de nunca conseguirmos estar inteiramente na verdade.

Há todo o resto, o que é dito a propósito da arquitetura, da pintura, da perspectiva, da arquitetura de Palladio. Vocês encontrarão tudo isso, eu direi, da maneira mais simples, e também o que é nossa tentativa de responder a essa bizarrice de nossa organização pela sublimação, ou seja, a tentativa de realizar uma obra, ou então eventualmente de nos apresentarmos no que seria de uma vez por todas nosso ser, pois uma falta a ser definitiva é o que inaugura nossa vinda à ex-sistência. Pois bem, então, a tentativa de responder a essa falta a ser por meio de um objeto que seria o bom objeto. Se o belo é o limite último da acoisa, a aproximação extrema da representação da acoisa – na medida em que a acoisa não é imaginarizável –, é no nível do ser, de ser um objeto, que a sublimação tenta resolver a dificuldade. E, como vocês sabem, a sublimação se exerce em registros extremamente diversos. Então, Lacan, quanto a isso, tem algumas fórmulas que Claude Dorgeuille lembrou tão bem ao longo dessas Jornadas, como, por exemplo, que a arte como sublimação é fundada num Urverdrangung da acoisa, num recalque primário da acoisa; que a ciência é fundada numa foraclusão dessa acoisa, de tal modo que ela reaparece no real – não sei muito bem o que Lacan quis dizer com isso, talvez o buraco negro?, enfim… –; e depois ele evoca também, nos diferentes meios de sublimação, a religião, que, diz ele, é umaVerschiebung, um deslocamento da acoisa, ou seja, a tentativa de apresentar, a partir desse lugar, esse ser bom que nos protege contra a acoisa.

Há alguns dias, fomos separados de uma psicanalista à qual muitos de nós estão ligados. Françoise Dolto é alguém que tive a honra de conhecer, e devo dizer que as relações que pude ter com ela me marcaram. Evocarei, por exemplo, uma noite em sua casa, na rua Saint-Jacques, em que ela aceitou, muito amigavelmente, responder às minhas questões sobre a história do movimento psicanalítico francês, antes da guerra e durante a guerra, uma vez que ela tinha sido uma testemunha ativa e precavida, apesar de sua pouca idade. Ela me falou de uma maneira que me fez refletir bastante. Eu tinha ido vê-la por esse motivo, na medida em que, posso dizê-lo, por que é que eu me interessava pela história do movimento psicanalítico? Foi porque Lacan tinha me pedido para escrever uma tal história que, naquilo que chamarei de minha doença partilhadora, eu convidara três outras pessoas para contribuir comigo na redação dessa história, e aconteceu que uma dessas três outras pessoas cuidou para que o projeto não pudesse dar certo de maneira nenhuma!… Em todo caso, fui então ver Françoise Dolto e ela me contou, ela não se preocupou de modo algum, como eu tentava fazer há pouco, com o que eu ia poder pensar, com a maneira como eu poderia suportar o que ela dizia… Ela não se ocupou de modo algum em saber se depois da entrevista eu seria capaz de me levantar e ir embora em posição vertical ou então se eu teria que voltar para casa de quatro! Felizmente, não era muito longe. Quero dizer que ela me contou a verdade… Ela não tinha “nem compaixão nem temor”, vocês sabem, essa regra que Lacan atribui ao herói, que avança “sem compaixão nem temor”. Em todo caso, com relação ao que ia me acontecer, parece que ela não teve nem compaixão nem temor. E é por isso que, se me aconteceu, se me acontece sempre, de eu me interrogar sobre uma posição analítica que, de alguma maneira, favorece a sublimação, qualquer que ela seja, pois era a posição que, sem compaixão nem temor, ela sustentava e desenvolvia com talento. Pois bem, o que eu compreendi, em todo caso, se me acontecia discutir com ela em diversas reuniões – não era íntimo, discutir justamente problemas de análise a esse respeito –, o que compreendi naquela ocasião, ao escutá-la, é que não adiantava eu discutir talvez sua posição analítica, mas o que eu não podia de modo algum discutir é que ela era um grande mestre, pois para falar assim, como ela fazia… – pois é verdade, ela tinha um estilo que fazia com que eu não fosse o único beneficiário desse tipo de verdades salgadas, jogadas na cara em cheio. Vocês sabem, eu tinha ido vê-la um pouquinho pelo prazer e pela alegria de encontrar a avó da psicanálise, todo nós almejamos isso, e quando se esbarra em alguém que, assim, surpreendentemente, o conduz pelas ruelas, alcovas, bastidores, todos esses detalhes, e que entre outras me explicou por que, por que circunstâncias, ela estava com Lacan, circunstâncias que ela não tinha escolhido, pois bem, o rosto da avó adquiria ali, bruscamente, reflexos singulares. Em todo caso, insisto, aquela maneira de falar, não sei se o fato de lhe dizer que eu tinha compreendido que ela era um grande mestre, ou seja, alguém que diz o que tem vontade de dizer sem se preocupar demais com o que isso poderá fazer no outro, e que diz o que tem vontade de dizer e, justamente, usando de sua liberdade de palavra, porque tem vontade de dizer, e lhe sou grato, não tomem isso como uma queixa a esse respeito, ainda mais que, insisto, eu não podia deixar de reconhecer nela, naquele momento, essa qualidade que acabo de citar.

Nós mesmos, por ocasião do estudo desse seminário, como é que nos comportamos? Quero dizer com isso que, das Ding, será que deveríamos nos aproximar dele? Ou será que todos nós, eu também é claro, será que buscamos com nossas falas encontrar, assim, a boa distância? Das Ding, evidentemente, é o que pode se dar a ouvir e, a partir desse momento, ouve quem quer, evidentemente, quem se autoriza a ouvir.

Há sempre essa exigência feita aos comentadores, de que expliquem, ou seja, lhes pedem que coloquem a acoisa na mesa, só que, uma vez posta na mesa, a acoisa, é evidente que, em conseqüência, ela está morta, quero dizer que nos vemos numa espécie de pequeno estado melancólico. Somos tomados, então, enquanto comentadores, pessoas que tentam explicar esse seminário, cada um se coloca a questão do que seria sua boa distância em relação a das Ding: perto demais, ele não ouve mais nada, a acoisa está ali, ele fica surdo e aí, ao mesmo tempo, ele a mata; e longe demais, ele talvez não diga tudo que deveria… e, então, simplesmente por essa observação, torná-los sensíveis ao fato de que, em nossos próprios exercícios, encontramos o que se acha desenvolvido nesse seminário, e é verdade que, para cada um de nós, ele levanta a boa questão. Então, será que devemos ceder aí em nosso desejo?

Quando Lacan propôs essa fórmula de que, se alguém era culpado, se se sentia culpado, era sempre por ter cedido em seu desejo, ele não se referia a um julgamento de valor, nem também a um julgamento moral, ele não dizia: sua falta é. Quanto a mim, eu lhes digo que a falta de vocês é simplesmente que vocês não vão até o fim disso que lhes permitiria, justamente, ficar em ordem em relação aos seus desejos. E depois também estar um pouco informados sobre esse objeto que é o que nos conduz; não estou simplesmente fazendo o jogo de palavras kantiano, mas é o mesmo, é aquele, é o objeto que “noumène”,3 é aquele mesmo. Se entre nós há quem se interrogue sobre o que os faz ir em frente, e que faz com que se possa sempre fazê-los ir em frente, que queiram se interrogar um pouco sobre isso, eles têm essa possibilidade, de saber o que faz cada um de nós ir em frente, o que o sustenta, e em cujo nome sempre se conseguirá fazê-lo ir em frente, fazer dele um soldadinho. O problema da culpa é, portanto, conseqüência disso, que é um fato clínico que vocês conhecem, é que estamos sempre em dívida. Vocês sabem, o inconsciente é contábil, mas estamos sempre em dívida, porque há sempre, no reembolso que efetuamos, em tudo que pagamos, há sempre um que falta. Nunca conseguimos – é mesmo o bê-á-bá de qualquer experiência moral – reembolsar nossas dívidas, o que quer que façamos, porque é assim, não adianta fazer cálculos – vocês conhecem os do Homem dos Ratos –, há sempre um que falta.

A única maneira de conseguir acertar as contas é tentar ficar a par de si mesmo com essa acoisa evocada o tempo todo, em relação à qual a experiência analítica permite, de algum modo, a reprodução desse momento original; isso não quer dizer que a partir desse momento vamos lidar com um sujeito liberado, de modo algum, seguramente não; mas, em todo caso, sujeitos que terão uma apreensão talvez um pouco mais tranqüilizadora em relação a isso que os sustenta e os faz ir em frente, sem que nunca possam chegar ao termo correto de seu encaminhamento, pois estão sempre em falta. Como vocês vêem, a observação de Lacan tem um alcance que responde aos impasses clínicos com os quais lidamos. Não é a resposta de alguém que constrói um sistema; quanto a mim, tento valorizar para vocês as vantagens, mas, afinal, esse nem era o caso de Lacan; não, ele não tentava exibir as vantagens, ele simplesmente dizia, e é aí que ele voltava a uma moral de tipo kantiano, que temos que realizar o que é possível. Utilizo esse termo para separá-lo bem do que seria o impossível. Isso se pode. A divisa, como vocês sabem, de Silicet, era, de certo modo, antiedipiana, pois dizia: “Você pode saber”. Saber, será que é mesmo necessário? Quanto a mim, não respondo sobre isso, no que me concerne. Contento-me em apontar para vocês os desenvolvimentos, os extremos, aos quais Lacan chegou. Será que isso tem alguma outra utilidade? Por exemplo, eu não sei, nisso que nos acontece, pois estamos evidentemente num mundo que se mexe, num mundo que muda e não sabemos muito bem como; que muda, isso é evidente, e os analistas têm uma certa dificuldade – quando digo os analistas, não me refiro forçosamente apenas aos psicanalistas – em situar o que muda e como faremos para nos situar.

Creio que, se vocês querem tentar se situar um pouquinho, essa acoisa pode ajudá-los. De que maneira? É claro, eu acho, que hoje o que nos serve de referência moral – e já foi dito no seminário – é a ciência. Quero dizer o fato de que, justamente, a ciência, esse das Ding não é o que a detém. Nada a detém, ela não tem nada a fazer com ele. Em outras palavras, ela chega a todos os extremos que se queira, que sabemos, ou seja, ela modifica verdadeiramente toda a nossa relação com o objeto. Talvez vocês aceitem, por exemplo, a observação de que o que hoje funda o objeto para nós não é mais nada que seja da ordem do valor que se poderia situar no Outro, ou seja, nos falta padrão. Perdemos o que podia servir de referência em nosso céu; o que dava o valor, nós nos perguntamos onde está, ao ponto de – observei isso por ocasião de outras jornadas – termos podido suprimir também o padrão monetário, o que também não é, nesse caso, sem algumas conseqüências e sem algumas dificuldades no que diz respeito à economia. E, no entanto, a acoisa, nós a temos, justamente, mais que nunca… não há mais valor que sirva de referência e, no entanto, pode-se dizer que as coisas se fabricam. Mas se trata de coisas que, como vocês sabem, têm esse caráter ao qual todos são imediatamente sensíveis, ou seja, o de ser marcado com o selo da artificialidade. Deixo de lado o fato de que são objetos de moda, de estação etc., mas, enfim, cada um é atingido, se interroga, talvez tenha tido às vezes um sentimento de culpa em relação a essa artificialidade experimentada, sentida. Mas o que é que dá o valor dessas coisas? Bem, é simplesmente a importância da demanda que foi suscitada, ou seja, o fato de que haja um consenso; é como para a sublimação, para dizer que ali se trata da boa coisa; então, se é a boa coisa, todo mundo quer; e é isso que dá seu preço. Em outras palavras, é quase, se quiserem, uma eleição democrática da acoisa; votamos a favor disso, então… mas é claro que do lado da Befriedigung, da satisfação, todos são evidentemente sensíveis a isso, esses objetos tão numerosos, tão diversificados, tão cultivados etc. são todos marcados, no que concerne à satisfação, por uma certa falta, são também marcados por uma certa insatisfação fundamental.

Se, efetivamente, esse é o tipo de ordem moral que hoje se impõe a nós, ou seja, uma ordem referida ao progresso da ciência, e na medida em que ela, insisto, foracluiu a acoisa, ela não quer saber nada disso, é claro que isso conseqüentemente quer dizer o quê?

O que Lacan evoca muito rapidamente: de um lado, os caminhos masoquistas nos quais nos encontramos presos, engajados, e também a aspiração mortífera mais viva do que nunca, pois a acoisa é fonte da pulsão de morte, pois a única maneira de encontrá-la é chegar a essa morte, àquela. Lacan fala de duas mortes, essa é uma delas, essa morte laica, se posso me expressar assim, que origina o que em nós é a pulsão de morte. Acontece que somos protegidos dessa pulsão justamente pelas diversas maneiras pelas quais nos defendemos, nos mantemos à distância da acoisa. Ao passo que sua falta na ciência não pode deixar, além do masoquismo que ela induz, de suscitar, por assim dizer, uma aspiração direta, sem limites, em direção à morte. E eu diria que talvez seja algo que constitui uma das pequenas lições desse texto.

Devemos organizar, não sei mais muito bem quando, jornadas sobre a toxicomania. Isso é um fenômeno! Todo mundo se surpreende: de onde sai isso? De onde será que isso vem? Que negócio é esse? Não se entende nada!, etc. Enfim, realmente, não se sabe que demônio é, esse não é um demônio comum, ele não tem seu lugar entre as figuras demoníacas com as quais estamos habituados; não se trata de modo algum do alcoolismo. É bem evidente que o alcoolismo é, como vocês sabem, uma das formas do culto fálico, o alcoolismo é dionisíaco. Trata-se de celebrar sua prodigalidade sem limites. Ao passo que, justamente, a toxicomania, não se sabe que figura dar a esse diabo, se não for justamente a figura da própria morte, ou seja, não é absurdo entender a toxicomania como a tentativa de introduzir, num mundo organizado por esse universo da ciência, isto é, em que nada falta, de estabelecer esse “ao-menos-um” que poderia vir a faltar, fazer falta; pois o jogo com o fato de que isso possa faltar é uma parte essencial da economia dos toxicômanos. Se isso não viesse a faltar! O momento de prazer, de redução das tensões, parece justamente ligado ao próprio momento da intoxicação… o nirvana… Somos mesmo obrigados a dizer que, em contrapartida, o gozo, gozo aterrorizante, gozo abominável, gozo estéril, gozo extremo, gozo que toma todo o ser, esse momento de gozo é reservado ao momento em que isso falta, e em que todo o jogo se organiza, ao que parece, em torno da manipulação disso que assim teria lugar num mundo fechado, como isso que, no entanto, poderia faltar e ao mesmo tempo organizar, ou melhor, eu diria, dar substância, dar ser a esse gozo masoquista e mortífero que, de outro modo, permanece não situável, já que é o do simbólico.

Como Lacan diz no início desse seminário, as posições do neurótico em relação a essa emergência da acoisa variam totalmente conforme ele seja histérico ou obsessivo. Isso já está em Freud. Quer dizer que, para a histérica, é o objeto fonte do mal, que ela poderá eventualmente passar sua vida maldizendo e até mesmo fazer de sua vida o exemplo da maldição que é para nós esse objeto que, enquanto mulher, ela é encarregada – delegada à representação, por assim dizer – de ter que representar, sustentar. Ao passo que o obsessivo, como vocês sabem, experimenta em relação a esse objeto esse excesso de prazer, esse excesso de gozo que o faz passar seu tempo interpondo distâncias entre si e o objeto capaz de lhe dar prazer demais.

Terminarei com essa pequena observação que me pareceu, devo dizer, um sinal de que o que eu podia cogitar em torno desses problemas não era inteiramente vão. Eu contei isso outra noite numa mesa em que estávamos, essa experiência que tive no quarto… Eu tive uma experiência! E num quarto de hotel, que eu ocupava aqui em Bruxelas. Consistiu em pôr a mão na gaveta da mesa-de-cabeceira, quando tive a surpresa – estava procurando um livro, para encontrar justamente referências sobre a Epístola aos Romanos; eu tinha uma Bíblia comigo, mas ela é impressa em letras muito pequenas e eu procurava uma Bíblia para viajantes um pouco cansados –, encontrei, então, dois livros: o primeiro era um pedaço de Bíblia, isto é, reduzida ao Evangelho de Lucas; não compreendi muito bem o porquê dessa penúria, mas ao pôr a mão no outro livro, imediatamente me apareceu. O outro livro era The Teaching of Bouddha, e me pareceu que a penúria de um talvez se explicasse pelo caráter opulento e avantajado do outro.

Por que é que eu vi ali um sinal? Pois bem, justamente no seguinte, é que eu creio – pronto, essa é a última suposição que ofereço a suas próprias reflexões –, creio que quando se está ligado a uma religião que, de algum modo, prega a apatia, situa o bem no fato de poder suportar tudo o que lhe acontece sem se mexer, pelo menos o mínimo possível, dizendo: defesa contra o objeto pela apatia – vocês sabem, aproveitei para ler algumas páginas –, pois então, quando se tem essa religião, creio que ela é particularmente adaptada à moral que resulta justamente da ciência, ou seja, o fato de suportar tudo o que seu movimento, o movimento simbólico, vem nos impor, suportá-lo a priori, quero dizer em nome da própria religião. Ao passo que, para aqueles que estão ligados à tradição do Livro, há justamente todos esses obstáculos que conhecemos e que trazem problema, até mesmo perturbam nossa economia, por que não dizer assim? A economia, contrariamente ao que se pensa, é antes de tudo um problema ético: a troca, as trocas são forçosamente mais ou menos levadas a isso. Só se pode trocar se há, entre os que trocam, esse pacto íntimo de que vão ganhar alguma coisa, pois não se esqueçam que nossa troca primordial se faz com o grande Outro. O paranóico é aquele que considera que é sempre roubado, é um ponto de vista como qualquer outro. Mas os que trocam são aqueles que consideram que, com o giro da troca, todos ganham. Trata-se de uma grande teoria econômica, Adam Smith, de que modo o interesse de cada um concorre para a felicidade de todos. Então, a questão da troca merece ser colocada de início, e em particular para nós, como um problema ético. Pois então, só digo isso para ressaltar que se vê muito bem como, hoje, essa religião da apatia, exorta a poder, em primeiro lugar, suportar qualquer coisa que venha lhe acontecer, e do mesmo modo, é claro, o que vai levá-lo à morte, até mesmo, certamente, a provocar essa morte em certas circunstâncias que não vou retomar. Em todo caso, algo que, em última instância, se aparenta à obediência absoluta, sem recuo, sem preocupação de ex-sistir frente ao simbólico; sem preocupação de ex-sistir. Pois eu me interessei um pouco durante este verão pela polidez japonesa, tive a sorte de encontrar, não um livro de reflexões sobre a polidez japonesa, mas um manual destinado aos homens de negócios: como, quando você está no Japão, não ser grosseiro demais para não correr o risco de incompreensões que poderiam ser catastróficas para os negócios. Então, como? Pois bem, a primeira coisa que se ensina nesse livro, essa coisa que pode parecer espantosa, é que, no diálogo – penso que o sr.4 vai querer me desmentir, se esse livro me deu indicações abusivas e se me arrisco a ser ainda grosseiro apesar desse manual –, no diálogo, o que importa com os outros é que não se imponha a eles sua ex-sistência, é preciso o tempo todo que ele lhe dê sua aprovação sobre o que você está lhe dizendo, senão seria uma violência extrema. Então, você não poderia de modo algum, como estou fazendo, fazer um monólogo. É preciso que você lhe deixe lugar, no que você diz, para que haja uma marca dele, uma marca sonora, que pode ser muito variável e que testemunha que ele está de acordo com o que você diz; não apenas que ele está de acordo, mas que ele retoma o que você diz como se fosse ele que estivesse dizendo. Será que estou enganado?

X.: Não.

Charles Melman: Obrigado. Quer dizer que, nesse diálogo, trata-se de conseguir se abolir mutuamente como sujeito da enunciação e fazer com que, no limite, não haja mais do que um enunciado, eu diria, cantado a dois. O que quer dizer, por exemplo, que essa paciente maravilhosa de que Marcel Czermak nos falou, outro dia, isto é, essa paciente que sofria por não ex-sistir, por vir continuamente colar-se ao outro, fazer Um – a psicose Uniana é uma palavra muito bonita e acredito mesmo que ela merece realmente entrar na clínica.5 No Japão, ela teria sido um exemplo de polidez.

Quero dizer que, se então vocês se referem a uma religião… Não estou absolutamente fazendo a menor crítica. Eu não me permitiria; nem a tal religião nem a tal outra, ou ao racionalismo em relação à religião. Não é de forma alguma a minha fala. Minha fala, vejam, é assim que eu tento que a escutem, é a de um psicanalista, ou seja, de alguém que tenta se situar graças a sua prática, graças a seu ensino em relação a esses problemas. Não estamos absolutamente, de jeito nenhum, fazendo aqui uma crítica. Ficaria consternado se fosse ouvido de alguma maneira como crítica. Mas uma religião que, então, estipula que a polidez extrema e mesmo afinal o êxito supremo é conseguir se desvencilhar de sua ex-sistência, ou seja, sobretudo, não reaparecer no mundo de qualquer forma que seja, pois então, parece-me que essa religião é inteiramente, inteiramente atual. Quero dizer que ela prepara para isso que hoje é para nós o mundo dos negócios muito melhor do que a École des Hautes Études Commerciales de Paris. E, se achei esse livro em minha mesa-de-cabeceira, é algo que faz pensar que os efeitos sobre nossa própria ex-sistência já estão se fazendo sentir. Exemplo de apatia (vou terminar aqui): vocês lêem tranqüilamente, na imprensa, que foi decidido que o consumo interno nipônico de produtos manufaturados, de que fazem parte os produtos alimentares e outros, deve aumentar 2% ao longo do próximo ano. Devido ao desequilíbrio da balança, quero dizer que a América interveio, de tal modo que etc. etc… O que é que isso quer dizer? Isso quer dizer que não se pergunta mais às pessoas se isso lhes dá o menor prazer ou se não lhes agrada, lhes dá uma arteriosclerose, uma hipercolesterolemia, tudo o que vocês quiserem; não se pede a opinião delas e, em particular, não se cogita saber se isso corresponde a seu apetite ou não. Coisas assim, decidiu-se que o consumo anual ia aumentar 2% e ponto final! Ou seja, vocês vão ter que obedecer. Vocês vêem, até agora era o objeto que, de alguma forma, organizava o apetite; aqui, o apetite vai ser, por assim dizer, imperativamente estabelecido pelo próprio simbólico. Vai ser, no limite, por que não dizer, um dever moral. Só lhes conto essa historinha como uma das incidências que essa colocação do objeto pequeno a nos permite situar; e, portanto, permite, se quisermos, que nos orientemos um pouco nesses problemas éticos que, hoje, se apresentam a nós e que são, devo dizer, nesse momento, inteiramente apaixonantes, muito interessantes, sem nenhuma outra consideração cósmica ou apocalíptica.

(…) os últimos depositários que conhecemos disso que é preciso chamar, não tenho palavra melhor, de humanismo; quero dizer que eles são os últimos a poder nos ajudar a nos pronunciarmos de maneira tão precisa sobre todos esses problemas, e isso justifica talvez, eventualmente, que eles façam ouvir um pouquinho sua palavra, no conjunto do que nos ocorre; de modo algum para tentar convencer ou o que quer que seja, mas apenas para testemunhar que terão participado desse conjunto fazendo ouvir o que devem dizer, pois a esse respeito, como vocês vêem, eles têm alguma coisa…

Vou parar então por aqui. Agradeço-lhes por terem – não avalio muito bem, mas espero – aceitado o que lhes trouxe, lhes disse.
_________________________________________

N.T. – No original, père-versement no lugar de perversement (perversamente), jogo de palavra compère (pai).
N.T.– No original, mis en abyme: “posto em abismo”Uma estrutura “em abismo” é a que se vê no filme dentro do filme, na peça dentro da peça, no romance dentro do romance. A expressão “em abismo” existe em português, no sentido mencionado, mas seu uso é mais erudito do que em francês.
N.T. – Em francês, l’achose (a “acoisa”) faz homofonia com la chose (a coisa).
Melman interpela aqui um ouvinte japonês na sala.
O caso está publicado por Marcel Czermak na Revista Tempo Freudiano nº 4, sobre As paranóias (“Um laço conjugal bem-sucedido – uma psicose uniana, o puro s’amblant”).