Francisco Fernandes
Preâmbulo
Um dos maiores desafios com os quais tenho me confrontado é o de produzir alguma historização possível da minha trajetória na psicanálise, que importe na sua transmissão aqui no nosso contexto brasileiro. Como é possível formular uma linha de reflexão que trace certa unidade na dispersão desses 52 anos de experiência, a contar do início da minha primeira análise, de participação nessa prática e do meu esforço em teorizá-la, levando em conta especialmente que ela ocorreu no Brasil, mais especificamente no Rio de Janeiro? Seria enfadonho produzir algo que realizasse o esquema narrativo empenhado em assinalar uma origem, algo como uma autobiografia psicanalítica; talvez isso se coloque, mas não o vejo como inicial, sobretudo porque é afetado por uma exigência totalizante, e, a meu ver, a transmissão é mais bem agenciada pelo fragmentário, pelo particular. E por que historização e não outra modalidade retórica qualquer, por exemplo, uma articulação teórica na forma de um ensaio, ou mesmo comentários sobre temas específicos?
Apesar desse senão inicial, penso que esse caminho retoma uma possibilidade discursiva em relação à qual Freud sempre atribuiu uma grande eficácia, por exemplo, de dentro da psicanálise, a “rememoração” como modo de acesso ao inconsciente, indo das “lembranças encobridoras” até as “construções em análise”, todas elas se valendo de marcadores genealógicos da vida do sujeito, e por fora, como recurso de exposição e estilo, sempre presentes como meios de retificação e elaboração das suas construções. Seja como for, achei inevitável esse caminho, e mais, persegui-lo deixando transparecer a sua particularidade, inclusive a minha inflexão singular – tratar-se-ia, assim, de uma leitura sintomática do meu percurso.
O Lado Um…
Inicio buscando assinalar o peso do que seria a orientação clínica da instituição na qual trabalhei a minha formação por cerca de 40 anos – O Tempo Freudiano – considerando nessa datação o ano em que comecei a trabalhar com Antônio Carlos Rocha, seu fundador, em 1985, muito antes de sua fundação, em 1998. Fui também um dos seus fundadores, com certeza o mais antigo aluno de Antônio Carlos; nesses tempos do início, coube a mim o trabalho de aglutinar pessoas em torno do seu ensino, que se dava através de grupos de estudos.
Foi uma instituição que se iniciou sob o peso de uma cerrada crítica a como a teoria lacaniana se difundia, senão no Brasil, ao menos no Rio de Janeiro. Antônio Carlos sublinhava sobretudo o mimetismo como o modo predominante das categorias lacanianas serem assumidas e trabalhadas. Os jogos de prestígio em torno de um saber de difícil acesso, o fato de ter sido uma orientação que emergia num contexto em que já havia uma articulação institucional dominante, fazendo com que o lacanismo se expandisse num contexto de enfrentamento, sem o lastro de produção de onde tinha se insurgido na França, suspendendo-o em particular tanto a ser mais um modismo quanto uma transgressão. De qualquer modo, do seu ponto de vista, o que acontecia aqui eram variantes “inautênticas” por conta desse modo mimético de assunção. Esses elementos indicavam assim uma via falsa da transmissão e que chamava, por isso, uma iniciativa que a negasse no sentido dialético para buscar instituir, nem que fosse num âmbito muito estrito, outra via que estabelecesse um modo de frequentar a psicanálise mais em acordo com as suas exigências internas de produção, o que se designaria pelo termo “transmissão” em contraponto à sua mera “difusão” apoiada no marketing da moda ou da grande nova revolucionária, ou transgressiva. Mas, como isso poderia acontecer num contexto em que, salvo a exceção de um, no caso, ele, Antônio Carlos, que fizera a sua formação em Paris, o conjunto das pessoas já tinha algum percurso nas condições dadas aqui no Brasil? E em que, inclusive, muitos tinham se aproximado dele sob os mesmos pretextos do que acontecia por toda a parte a respeito de Lacan por aqui. Não vou adentrar essa questão nesse texto, vou deixá-la, contudo, no horizonte e latente, porque ela é nuclear quanto a uma tematização que tem se tornado mais aguda hoje na psicanálise, mas que já estava presente desde antes na cultura brasileira de várias formas, sendo o que se discute atualmente em torno do que o significante “decolonização” aciona.
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O lacanismo foi uma insurgência e, por isso, teve que responder às interpelações tanto quanto a ser uma moda quanto a ser uma transgressão a métodos já consagrados pela prática e pela autoridade da tradição que vigiam por aqui – no caso, a psicanálise tal como era encaminhada entre nós, sobretudo pela IPA; havia outras instituições que não a IPA, mas estas se organizavam segundo pressupostos análogos aos da IPA. Com Lacan, tínhamos reações: de um lado a moda, ele era agrupado junto do núcleo intelectual, de proveniência francesa, muito prestigiado no campo da cultura que emergia no campo das ciências sociais e da filosofia tendo a linguística como “ciência piloto” – o estruturalismo; de outro, como transgressão, pelo fato de Lacan derrogar os princípios “técnicos” tanto de uma psicanálise quanto do seu ensino através de mecanismos institucionais tais como os preconizados pela IPA. É claro que, como insurgência, Lacan não emergiu aqui como consequência dos embates próprios nas condições de produção e reprodução da psicanálise entre nós dadas pela IPA. Ele veio de fora, nós não importamos apenas o lacanismo, mas também o conjunto de crises que ele acionava vis à vis a psicanálise ipeísta. Dos anos 1980 até os dias de hoje, a psicanálise brasileira tornou- se majoritariamente lacaniana, ela ampliou a sua influência social, extrapolou as suas condições de exercício, limitadas que eram a uma prática liberal. E isso não aconteceu sem que cada grupo tivesse de inventar modos próprios de efetuar essa transição com frequência mediatizada por todo tipo de crise.
Convém perguntar, indo além de experiências particulares, o que no Brasil, no campo cultural, não sobreveio desse modo mimético. Essa questão, por exemplo, não é nuclear no nosso modernismo? Nós nunca tivemos uma participação intrínseca e importante na construção dos aspectos mais relevantes da cultura ocidental. Por paradoxal que seja, advêm das culturas populares, pagãs, sem Estado, os marcadores que nos dão alguma originalidade. Mesmo quando assinalamos alguma produção nossa de “alta cultura”, como na literatura, onde vamos encontrar esses traços que nos especificam? Basta ler Guimarães Rosa para encontrarmos a devida resposta. É completamente diferente dos EUA, tão efeito da colonização quanto nós, nação que deu ao longo do século XX, as principais contribuições/intervenções no campo da ciência na sua relação com a cultura – eles inventaram os principais dispositivos e artefatos que caracterizam o mundo da técnica na sua relação com a cultura, além de ainda serem o principal motor da dita economia capitalista.
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O Tempo Freudiano avaliou e respondeu a essa conjuntura mais ampla da maneira como indiquei no início, ele se postou numa posição critica em face da insurgência lacaniana por aqui limitando-a a ser tão somente mais um mimetismo típico dos modos de proceder da cultura brasileira, colocando-o sob suspeição. Como éramos lacanianos, de acordo com essa avaliação, tratar-se-ia então de encontrar uma alternativa para passar a verdade de Lacan com seriedade. Estávamos no auge da nossa pretensão fundacional, seria o caso de propor um modo de receber e encaminhar o discurso de Lacan que não fosse pela suposta via imaginária do mimetismo, sendo esse modo alternativo a promoção do submetimento a uma mestria “explicitada” que colocaria em questão essa primazia da imitação mimética na difusão da psicanálise. Este modo seria mais “autêntico” e mais condizente com as premissas inerentes à teoria lacaniana de fundar o laço de trabalho a partir da disparidade entre S1 e S2.
Esse submetimento teria como efeito nos encaminhar para uma posição de produção a partir de uma mestria que tomava corpo aqui, não a de sermos meros reprodutores e difusores da teoria lacaniana apoiados num saber consensual e administrado lá fora pelos mestres franceses que faziam as vezes de autoridade, já que o mimetismo não aciona nenhuma produção, ele é autorizado de fora desta, segundo concordar ou não com a boa norma vigente nas estipulações consensuais cuja fonte está alhures.
O trágico na história é que os demais grupos, com estilos muito diferentes, era evidente, reproduziam o mesmo esquematismo significante: cada uma com o seu pequeno mestre, mimetizando Lacan, no mesmo ato em que acusava o grupo rival de fazer isso da pior maneira (qual seria? e qual seria a boa?). Haveria outra forma de encaminhar uma insurgência como foi a de Lacan? É possível que ela possa vir a existir, mas é um fato que, de maneiras muito diferenciadas quanto a constituírem as suas respectivas “governanças”, foi através do esquematismo colonizante que a psicanálise lacaniana incidiu de maneira significativa na cultura brasileira, em especial nos seus extratos mais articulados com as ditas ciências humanas, sociais, as artes e a filosofia. E foi uma decisão nossa, poderíamos ter nos tornado comportamentais devido à influência americana, mas não: insistimos em Lacan. Por quê?
Aconteceu-nos o que, posso ver hoje, passadas tantas crises, revela- se ser a potência do ensino de Lacan. Começamos com o nosso sintoma, sim, o mimetismo, tivemos de contorná-lo – efeito de análise – com frequência, talvez mais do que era preciso, mediatizados por crises. Mas o fato é que, pouco a pouco, na dinâmica do processo foram se colocando os limites da nossa apropriação sintomática, da esterilidade das suas promessas, até o ponto de ruptura interna, no qual o que nos retornou como questão era justo sobre o que produzíamos e o modo como produzíamos. Um pequeno dístico a modalizar essa trajetória, diria melhor assim, “o que nos retornou como questão era justo sobre o que produzíamos e o modo como produzíamos… aqui”. “Aqui”, a volta necessária para retomar algo que se inicia pelo sintoma, não poderia ser de outra maneira, que a seu termo se abre por seu impasse levado a seu limite no processo histórico – as condições de transmissão da psicanálise tais como estão postas no seu dinamismo aqui no Brasil em função das questões que se colocam aos analistas brasileiros nessa circunstância própria e singularizante que é a nossa.
Quem pôde de fato passar pelo princípio dessa proposta de formação no Tempo Freudiano, pôde de fato tirar muito proveito dela. Pois, em alguma medida, as pessoas estudaram muito, colocaram as suas práticas em questão de uma forma muito radical. Qual foi a peculiaridade desse trabalho, especialmente quando consideramos a rubrica de Atenção Psicossocial? Numa associação tão problemática quanto fértil, ficamos vinculados à Escola Psicanalítica de Sainte-Anne, fundada por Marcel Czermak, fizemos um percurso em que ficamos imersos nesse ensino, durante mais de 10 anos, num estudo e numa leitura intensa e extensa de uma série de artigos de pessoas dessa escola que foram traduzidos e publicados por nós, sobre a clínica das psicoses.
Pergunta: que clínica pode emergir de uma tal construção do endereçamento transferencial que se finca, por um lado, na explicitação da mestria e por outro, no estudo das psicoses cujos avatares giram em torno da foraclusão do Nome-do-Pai? Resposta cabal: uma clínica do Pai. No entanto, no endereçamento à Escola de Sainte-Anne um curioso paradoxo em torno de Marcel Czermak e o seu ensino se apresentou e abriu para uma possibilidade nova e bastante inesperada. É certo que Czermak era, como ele mesmo dizia, um republicano de formação clássica, portanto, alguém que situava a questão do Pai como central para a ordem do discurso na sua relação com o desejo e como pivô mesmo no trajeto de uma cura. No entanto, sua clínica, sobretudo no seu tratamento das psicoses, apontava para a dimensão do objeto a. Um dos seus livros mais importantes porta o título “Paixões do Objeto”, entenda-se, o “apaixonado” em questão é o objeto a que sequestra o sujeito ao ponto de apagá-lo nas passagens ao ato que encontramos com frequência nas psicoses. De sorte que, com Czermak, nos aproximamos de uma maneira muito intensa do “além” do pai que as psicoses assinalam sob a aparência de um “aquém” do pai na foraclusão do Nome-do-Pai. Que, nas psicoses, por sua topologia de base, se desvela, mais do que em outras estruturas, a dimensão “anterior” do falante, a mais “universal” de todas, que está presente em qualquer cultura: que o batimento da linguagem demarca, em primeiro lugar, a dimensão objetal. Aquela condição no laço social dentro da qual ele se torna bípede e falante, apto à sociabilidade na assunção a um corpo especificado pulsionalmente.
O Outro Lado…
O outro lado diz respeito a que, antes de me encaminhar na aventura que foi participar da fundação do Tempo Freudiano, eu já estava bem adentrado na psicanálise a partir do Rio de Janeiro. Já fizera mesmo uma formação completa numa instituição nos moldes ipeístas, o Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro. Mas o aspecto decisivo não deriva daí, dessa formação. Ele vem como marca da porta por onde iniciei a minha trajetória na psicanálise, um estágio de três anos numa favela em Niterói que definiu toda a minha trajetória na psicanálise a partir do atendimento de pessoas e situações referidas às classes populares. Desse estágio, fui trabalhar no sistema penitenciário, logo em seguida atuei na Colônia Juliano Moreira no início da Reforma Psiquiátrica e, já como professor da UFF, dediquei-me a trabalhar na interface da universidade com a rede de saúde do município de Niterói. Aí temos uma figura que foi decisiva para toda uma geração em Niterói, Raldo Bonifácio Costa Filho e a orientação clínica que ele propunha. Com ele participei em inúmeros contextos de reuniões clínicas, seminários, supervisões etc., além do fato de, a partir de 1985, passar a ser seu colega no curso de Psicologia da UFF, onde começamos a trabalhar numa estreita parceria e cooperação.
A sua clínica não era uma clínica do Pai, é difícil encontrar um predicado que a designe bem. Era uma clínica ciente do fato de que, entre os populares, a palavra tem uma dinâmica muito própria que não faz um apelo ao pai porque não conta com ele como instância autenticadora da palavra, ela se encaminha mais para encontrar, na fala do sujeito, o que nela pode emergir como instância que assinala o lugar onde a lei inerente à linguagem se faz presente e pode delimitar, na emergência da significância, um dizer mínimo que, aí sim, nesse ponto, pode ser autenticada. Nas classes populares no Brasil, essa instância não é o pai enquanto lugar da lei, pelo menos não é o pai contornado de tal modo a poder valer como o Um que sustenta o jogo da significância e do discurso. Entre os populares, o Um é encenado e tem uma feição imaginária que circula entre formas em que o poder se encaminha, ou pela força, ou por consensos identificatórios. Mas não é ele quem decide os rumos do discurso, na verdade, a significância é em boa parte dos casos descolada do discurso, dando a impressão de quadros psicóticos que de fato não o são, sendo mesmo parte do trabalho analítico com essas pessoas articular esses dois processos desintrincados para que alguma demanda se configure em um endereçamento.
Nesse ponto temos de admitir que tudo se complica, daí ser justo o subtítulo O Outro Lado. Em primeiro lugar esse nome Brasil. Aqui, muito diferente do que acontece na Europa, nos Estados Unidos ou mesmo no oriente longínquo, onde formas tradicionais muito fixadas ou mesmo, a partir da modernidade, onde o sistema educacional teve e tem um relativo êxito nomalizante em formar membros e cidadãos, isto é, indivíduos cientes dos seus lugares na cultura ou, quando se trata do Estado, cientes das suas funções, tal processo não se fez presente para todos no sentido demográfico. O Brasil é muito heterogéneo a esse respeito, sendo muito variado o grau em que as pessoas são situadas na cultura e pelo Estado como cidadãs, esse aspecto é definido pela posição de classe do sujeito. Observem que não estou a fazer uma crítica, tampouco uma denúncia, o processo social opera assim, sendo esse aspecto fácil de se constatar. Aliás, não há quem não saiba disso, a polícia invade a favela, distribui tiros, mata uns e outros, dentre os quais crianças, e o regime da impunidade civil não se desloca. Isso pode ser generalizado, a escola não funciona, os equipamentos de saúde são precários e vai por aí. O que a clínica do Raldo operava e nos ensinava, é que mesmo sendo tratados dessa maneira, os populares agem e organizam uma experiência para dar conta das suas vidas, eles articulam um saber a propósito de como são tratados e organizam as suas demandas e valores de modo a, como se diz, “se virarem”, isto é, seguirem na vida. E não é um saber apenas compensatório que articulam, há uma afirmação fundamental dos seus modos de inserção na vida nas condições que são dadas – e esse aspecto explica muitas nuances que, em geral, os manuais de sociologia explicam mal, falando de ignorância ou alienação dos populares. É a prática com essas pessoas, tendo sido a clínica que Raldo praticava lá nos idos 1970, que nos permitiu entrever de que modo essas pessoas são ativas, se deixam organizar pela palavra, mas não têm muita confiança no pai e mesmo prescindem dele, sem, no entanto, é o que resta a explicar, recaírem na fatalidade da psicose, como seria o caso de se pensar se essa “relativização” do pai que fazem coincidisse com o que, em Lacan, se designa como foraclusão do Nome-do-Pai.
É muito importante entender que essa clínica não foi o fruto de uma especulação teórica, ela emergiu da prática, na prática, nos surpreendendo e nos desafiando a ousar esclarecê-la. Corríamos atrás dos conceitos para tentar dar conta deles na teoria, mas ela insistia na sua opacidade a partir das categorias que orientavam as nossas formações mais formais na psicanálise. O giro através do qual reconhecemos que ela foi efeito se localiza na seguinte sequência: ao recebermos essas pessoas e buscarmos localizá-las no Édipo, o que encontrávamos era a ausência do Pai nas suas inúmeras formas; ao situarmos então o dinamismo psicopatológico nessa ausência, erguia-se nesse ponto a descrição generalizada da “família desestruturada brasileira”, que mantinha o pai como potência efetiva em razão da sua presença negativa – uma curiosa maneira de salvar o pai e a família como se “estruturada” tivesse um sentido bem definido. Custou realizarmos que não era “ausência de pai”, mas “sem pai”. Configuração difícil de localizar porque ela não é geral, ela tem uma distribuição difusa na população, isto é, nós encontramos aqui neuroses comuns que giram em torno do Édipo, psicoses conforme os manuais, marcadas pela potência negativa da foraclusão do Nome-do-Pai, “sem pai” está no limite da apreensão conceitual. Foi por essa razão que começamos a apelar, por exemplo, para a antropologia buscando encontrar pistas de como se organizam os grupos primários entre os povos indígenas e os negros. Mas era assim, o homem, a figura masculina, em muitos arranjos sociais e coletivos no Brasil, não necessariamente migra para a assunção de uma forma de autoridade que o marca como pai no sentido em que o cristianismo define a sua figura a partir da família e do parentesco trabalhado por ele ao longo da história; tendo as mulheres, por seu turno, assumido formas de autoridade que não observamos alhures…
Não vou me estender muito mais do que indicar esses pontos dessa clínica, desdobrá-la é ainda um trabalho por fazer e exige um outro contexto de exposição. Vou apenas indicar de forma breve e alusiva a principal visada que essa clínica nos ensinou: ao invés de nos apoiar na instância paterna para fazer funcionar o campo da fala, tínhamos que nos centrar na emergência da significância e do sentido no campo mesmo onde emergem as demandas mais paroxísticas, jogando e nos movendo na teia imaginária mesma em que essas demandas, carregadas de todas as paixões, se expressam, mais do que isso, são atuadas – manifestações entre uma histeria aguda e um surto psicótico. Nesses contextos observávamos que o que fazia as vezes de alguma autoridade era o próprio sentido emergente, carregando junto consigo a possibilidade de discurso, sem nenhum apoio numa identificação com a vertente vertical da palavra, dependendo estritamente de alianças consensuadas, fugazes, sem suporte outro do que o “combinado” na palavra, e a cada vez, até a iteração desse processo deixar sua marca que assinala o lugar da transferência no pacto que emerge na imanência do laço social com um apelo fraco à alteridade “transcendental” do pai – essa dinâmica nos permitia entrever que a Lei é da linguagem e ultrapassa o pai, pode se suportar nele, aferrar-se nele, mas, como condição fundante, está além, pode prescindir dele, sendo, na verdade, a fonte da sua autoridade – enfim, um simbólico além do pai que brota de dinamismos imaginários, nos choques que cavam o registro do real entre a palavra e o corpo. A partir dessas constatações, por mais precário que esse modo de funcionar possa parecer, e é, passamos a entender que comunidades muito grandes de pessoas se vinculam dessa forma, inventam e tecem as suas vidas desse modo e com esses recursos. Foi assim que vimos comunidades inteiras conseguiram conservar os cacos das suas culturas de origem, uma dinâmica que evoca “algum pai”, sem terem disso nenhuma “consciência de si” e num contexto de uma depreciação violenta das nossas elites, com o adendo de que, foi dessa forma que tiveram algum êxito em marcar o que é o próprio e especificante no significante “brasileiro”.
E um Outro lado se impõe. Trata-se de um giro, ali onde a nossa apreensão do popular se dá por meio de categorias negativas que assinalam um déficit, é o caso de dar lugar a que, apesar de tudo, essas pessoas criaram um mundo a partir dessas condições extremas e adversas. Criaram, inventaram o Brasil, o Brasil delas em torno do qual dançam e comemoram. Um Brasil difícil, não é o caso de produzir mistificações, com traficantes, milícias, a política… mas enfim, um Brasil sujo onde está inscrita a sua singularidade enquanto um ponto de vista que diz respeito à civilização. Toda a questão, o desafio, é como adentrar esse Outro lado dando lugar à positividade das suas operações.
O Lado Um e o Outro Lado…
Embora o pai seja um significante, na verdade, o Nome-do-Pai, em especial a sua função “nomeante”, ele é também uma formação social determinada historicamente. Essa, digamos, ambiguidade, determina uma atitude muito frequente entre os lacanianos quando se trata de discutir algum tópico que a exige. Muitas vezes é assim, se nos apoiamos na historicidade, emerge logo a acusação de historicismo, sociologismo, etc. — pecados para quem é lacaniano – e logo surge alguém, restaurando a boa norma teórica, a dar aula a respeito da estrutura vis à vis as circunstâncias históricas e sociais; a antropologia é admitida nesse contexto, mas vale sobretudo para assinalar a eminência estrutural do conceito de parentesco e, por isso, o seu pertencimento à esfera do simbólico. No entanto, é inevitável, a discussão, ou melhor, a tensão conceitual emerge, vou tentar lançar algumas luzes a respeito.
O próprio Lacan maneja com ela. Em inúmeras ocasiões, ele distinguiu entre sociedades etnográficas e sociedades marcadas pelo Estado, escrita, discurso, pai ou uma mescla dessas formações. Uma distinção importante dele a esse respeito se dá quando ele diz que nas sociedades etnográficas os deuses aparecem por toda a parte no real – no contexto, um dos seus três registros –, enquanto nas sociedades que conhecem o Estado ou são monoteístas, ou ambos – a discussão nunca se precisa, é um terreno sempre movediço devido aos usos teóricos a que pode se prestar – a instância que marca o lugar da Lei é o Pai, aqui com maiúscula para dar a devida ênfase, e o seu registro proeminente é o simbólico que concentra em si a “força” vertical da palavra, quer dizer, sua autoridade.
Entre nós, a confusão não é pouca e, no que me diz respeito, é crucial admitir isso, pois, salvo exceções a determinar, é raro se ir além, nas discussões, de generalizações apressadas, nas quais se evita visadas mais detidas e pormenorizadas. Mais recentemente, no entanto, tornou- se mais aguda a presença dessas pessoas fora da marcação ocidental que também compõem a nossa demografia. Temos lido muitos textos produzidos pelos que já estavam aqui antes dos portugueses. Emerge também o entendimento de que, entre as pessoas pretas, a escravização teve configurações variadas no tempo e no espaço, e, por exemplo, a presença de núcleos comunitários dessas pessoas foi muito mais abrangente do que se imaginou. A categoria de mestiçagem, embora um fato, quando é tomada dentro dos vieses ideológicos que sempre a reconheceram, seja à esquerda, seja à direita, traz muitos problemas que mereceriam ser mais bem determinados. Mas é difícil estabelecer essas condições de reflexão, o campo é muito conflagrado, proliferam predicados gerais e todo tipo de sinonímias e analogias, de sorte que é difícil pegar o intrincamento, mais do que a “mestiçagem”, pois esta categoria sugere “homogeneização”, de “tantas origens heterogêneas” que compõem o nosso “tecido cultural”, muito menos homogêneo do que se supõe nos seus valores e muito denso no seu intrincamento na forma de alianças.
Destarte, sabe-se que a nossa “direção civilizatória” foi “progressista”[1], isto é, em linhas gerais concebe-se os “problemas” da população como déficits, tratar-se-ia então de corrigi-los através do progresso, algo como um curso da história que vai, de maneira aditiva, nos aproximando dos indicadores dos países mais ricos tomados como norma. Proliferam então políticas compensatórias cuja inspiração, enquanto “política social”, é armar formas de vida que nos aproximem dessas formas ocidentais, o típico pequeno burguês pobre da Europa ou dos EUA. Somos pobres, temos de nos desenvolver, investir em educação, configurar melhor a relação capital/trabalho por aí vai. Todavia não funciona, e muitos economistas liberais, que outrora eram mais otimistas a respeito dessas possibilidades, começam a desconfiar de que o buraco é um pouco mais em baixo, por exemplo, André Lara Resende ou Eduardo Giannetti, para citar apenas dois com algum prestígio nessa direção.
O nosso progressismo, com suas políticas compensatórias, nos impõe algum senso critico do que não é para ser, enfim, mas não é muito esclarecedor quanto ao que opera nos levando com insistência ao fracasso delas. Temos os fatos dos quais já somos lúcidos há muito tempo, nossa corrupção, o racismo, a concentração de renda etc., enfim, esse nosso capitalismo, que não sabemos mais se o termo “periférico” o qualifica com a devida precisão.
No entanto, é mais difícil se colocar a questão, sim, o povão é maltratado, não funciona por isso, mas, mais fundo, o tal povão tem boas razões, mesmo sem ter nenhuma consciência disso, para recusar esses préstimos todos. Nós nos relacionamos mal com o fato de que, de muitas maneiras, na miséria cruel a que estão submetidos, há também uma recusa a adotar os valores promovidos pelas elites nas suas ofertas progressistas, há como que uma escolha de, mesmo na mais extrema precariedade, afirmar um modo de vida em torno do corpo, do fruir da vida, da convivência presencial, muita briga também, em detrimento do trabalho disciplinado a serviço da acumulação. O traço desse fenômeno é muito difuso e difícil de isolar, há que se dar muitas voltas até se poder admitir que ele também opera, ali mais, ali menos… inclusive, muitas vezes, marca o povão com mais atributos negativos, ser preguiçoso, indisciplinado, sem senso de ordem, por aí vai.
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Uma conjuntura que me auxiliou a apreendê-lo, além de praticar o tipo de clínica a que Raldo encaminhava, foi a experiência oposta dos valores estruturantes dessa nossa prática com os populares. Foi justa e paradoxalmente a clínica fundada no mal-entendido a respeito de nossas condições aqui serem homólogas, mas em déficit, às da França republicana, já mencionadas, de Marcel Czermak e seus colegas de Sainte- Anne no Hospital Rousselle de Paris. A sua clínica, como já mencionei, é uma clínica do pai no melhor sentido da palavra que essa designação poderia ter. Por isso, quanto às psicoses, não avança no sentido normativo de oferecer o psicótico ao pai, no sentido de que este assuma sua norma, reconhece que ele está afeito a uma condição estrutural que o limita, por um lado às possibilidades de um acolhimento pelo Estado em dispositivos próprios e/ou às possibilidades de invenções criativas como suplência que lhes permite, a uns poucos, não é extensível a todos essa sorte, frequentar em algum nível a economia fálica do laço social ordinário.
Marcel Czermak deslocou o lugar do hospital psiquiátrico de ser uma forma social que se esgotava na sua função de normalização social, para ser um instrumento de observação, uma espécie de microscópio, a partir do qual se podia investigar, através da clínica psicanalítica, as estruturas das psicoses muito de perto quanto a serem manejáveis pela palavra. Com ele a psiquiatria ultrapassa a condição de estar estabelecida sobre descrições que delimitam fenomenologicamente as psicoses em face da normalidade e de retirar a sua autoridade de uma iniciativa normalizante que a sociedade lhe empresta tanto quanto lhe exige. Com o instrumento do hospital psiquiátrico, o dispositivo da “apresentação de doentes”, a base descritiva da psiquiatria francesa da passagem do século XIX para o XX e a teoria lacaniana sobre a condição estrutural das psicoses, ele inaugura, através da clínica, uma abordagem psicanalítica das psicoses, algo como uma psiquiatria psicanalítica em sentido próprio.
É peculiar como clínica do pai porque é mais uma clínica sobre um modo de “presença” do pai, que se dá pelo negativo da foraclusão do Nome-do-Pai, tal como acontece numa sociedade republicana como a francesa, bem diferente do que estou a designar aqui como o “sem pai” de imensos estratos da população brasileira. As manifestações de ambas as situações podem coincidir sob inúmeros aspectos, mas no essencial, na estrutura, são diferentes. Pelo menos temos aí uma questão que, para nós brasileiros, vale a pena ser colocada tendo em vista as nossas circunstâncias.
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A função paterna, como já antecipei, é trabalhada mesmo por Lacan, entre ser uma formação social e histórica datada e uma operação significante que responde pela função nomeante que assinala o “fecho”, no sentido topológico, do registro do simbólico. De fato, quando Lacan apreende essa função, ele o faz observando a coincidência entre ela e a instância paterna na sociedade europeia; será pouco a pouco, ao longo da sua teorização, que ele observará que essas duas funções se acoplam mais do que coincidem ponto a ponto e que a função nomeante é muito mais geral do que o pai em especial quando este é entendido como formação histórica. O pai responde por essa evacuação do real do campo da realidade, a “neutralização” pulsional desta, digamos a sua domesticação. Foi no processo histórico que isso ocorreu, das sociedades etnográficas, onde o real povoado de deuses emergia na própria realidade, às sociedades pagãs já organizadas em torno do Estado, o que, a seguir, realiza o cristianismo onde o real, pela via do simbólico, é situado na transcendência, “fora do mundo”, com a qual temos a relação mediatizada ditada pela providência, com a alteridade “vazia”, mas suprema enquanto criadora e ordenadora do laço social até o ponto, marcado pela ciência e toda a produção filosófica que emergiu com ela, onde o Outro se esvazia por completo, sendo o lugar de uma pura alteridade sem conteúdo algum, apenas estruturas de escrita. É no contexto do cristianismo que emerge essa figura, o pai, que, no lugar do mestre, faz a mediação entre o particular e o universal no laço social, dando lugar ao que se designa como família como instância do particular e o Estado a responder pelo universal, isso desdobrado na representação, através da religião, nos avatares das relações, difíceis, entre Deus, agora único, e os homens.
Do ponto de vista da constituição do sujeito, de como um bebê passa a responder como sujeito, a psicanálise nos permitiu uma aproximação dessa articulação absolutamente nova por colocar no núcleo da sua análise a relação entre corpo e linguagem. Embora os psicanalistas, sobretudo os lacanianos, deplorem o que seria um ponto de vista desenvolvimentista, sob esse aspecto de como um naco de carne toma a palavra, ela teve de considerar o laço social dentro do qual essa passagem se faz efetiva. Ora, no contexto de Freud, essa forma social não podia ser outra senão a família patriarcal do seu tempo. No entanto, vemos como Freud, sensível à questão, mesmo com o que podemos designar como seus equívocos, teve de fazer apelo, através da antropologia do seu tempo, a ordenações “anteriores” ao advento da família patriarcal – é nesse contexto que ele projeta para trás o pai, buscando entender o que nele respondia pela exigência lógica da linguagem de marcar o universal, e as mediações com o particular a partir do qual ele vem estabelecer, digamos, a sua “superioridade” em exercer a soberania ordenadora do discurso, criando assim o mito (respondendo pelo universal) do pai primevo, um “macaco” assinalando o universal a partir da sua força ou potência particular que se absolutiza por seu emprego como poder, a força física como metáfora da potência significante, exercida no particular da convivência com os seus semelhantes.
Essa configuração está marcada na história do ocidente, herdeira do Império Romano, e se desdobrou nos avatares dos três monoteísmos que definem a sua história. A clínica de Marcel Czermak nos permite chegar muito perto de como esse pedaço de carne se põe a falar a partir da sua relação com o pai numa sociedade como a europeia. Entretanto, com esse detalhe que é enorme, é uma clínica que não esclarece essa questão por seu sucesso, mas por constatar onde, em que ponto da articulação estrutural, no sujeito, digamos, isso “quebrou”. Ou seja, é uma clínica que não esclarece pela efetividade positiva do pai que ajustaria e tornaria o sujeito apto à convivência social, mas pela efetividade do seu não comparecimento na sua função simbólica (foraclusão), indicando, pelos efeitos que se vislumbram nas psicoses, que ele, o pai, esteve lá na sua abolição ou não assunção ao simbólico. Essa conjuntura não é a mesma que o “sem pai” tal como observamos no Brasil, embora encontremos muito da fenomenologia que Czermak localiza nas síndromes que descreve como próprias das psicoses em situações no Brasil que não podemos definir como psicóticas.
Marcel Czermak nos poucos encontros que tive com ele não aprovava a minha deriva antropológica, mas, do meu lado, não vejo alternativa, não há como pensar o “sem pai” aqui pelo viés da foraclusão, há muitos fatos que apoiam essa declinação, mas, sobretudo, como defender que partes significativas da nossa população pobre é psicótica? Falar em psicose social? Não acho esse um caminho que valha a pena porque ele omite o fato, já apontado aqui inúmeras vezes, de que, apesar de tudo, essas pessoas constroem uma vida, ou seja, se organizam no discurso.
Essa discussão é muito difícil porque, em razão do mimetismo, entre tantas outras formas de ocultação das nossas condições sociais estruturais, damos a parecer que somos uma derivação subalternizada da cultura europeia, nós não comparecemos por nossa originalidade, mas por uma marcação deficitária da nossa diferença. Um exemplo bem peculiar, mas óbvio, é tomarmos um formulário desses “oficiais” a serem preenchidos pelo cidadão. Nele consta, a ser preenchido, o nome do pai, o nome da mãe, data de nascimento e outros dados desse tipo que referenciam o sujeito ao campo social. E o formulário está preenchido, porém, quando o observamos de perto, o pai não é o pai, pode ser o tio, o companheiro da mãe, a mãe não é a mãe, mas a avó ou a “pessoa” que criou e por aí vai. As pessoas se ajustam às figuras do parentesco cristão europeu e tudo bem, mas não são as relações de aliança do parentesco que valem, até porque, isso é uma questão, que patrimônios, no sentido da propriedade privada numa economia capitalista, essas pessoas teriam para passar adiante? Que função tem tal ocultamento da origem, em especial da forma como o produzimos?
O fato é que, no Brasil, as relações de classe social são racializadas conforme as vicissitudes que definiram a nossa demografia. Na nossa sociedade, ter uma família nos moldes europeus está referido à sua estrutura de classes. A racialização, do centro para a periferia, e lateralmente, estará mais ou menos em acordo com a estrutura do parentesco europeu; nos limbos da periferia ela assume toda a carga do negativo, diz-se “desestruturada”, seus membros são preguiçosos, depravados, em suma, os adjetivos apenas repercutem essa negatividade nos traços de carácter que especificam essas pessoas. É muito raro que se problematize essa questão não a partir do negativo, do déficit, mas da positividade de como foi possível para elas “inventarem” uma origem se valendo das circunstâncias tão difíceis e problemáticas nas quais efetivamente nasceram, sendo formadas, nas quais estavam presentes além do europeu, o nativo, o negro e a teia de relações que os articulava numa trama social determinada historicamente. A implicação maior dessa constatação óbvia é justamente que os periféricos tiveram que “se virar” sem pai, o que delimitou, sem dúvida, nas relações com o patrimônio econômico a condição deles serem os pobres, mas, talvez ironicamente, tendo sido eles os que trouxeram o mínimo de originalidade que nos permite sustentar o significante “brasileiro”.
A Diferença enfim…
Chegado a esse ponto, tenho que me aventurar a dizer minimamente a nossa diferença com relação a um imperativo posto por uma problematização a partir do declínio do Nome-do-Pai. Se essa é a situação europeia, mais extensivamente a de todas as sociedades formadas a partir dos monoteísmos, ela não é o caso estritamente falando da sociedade brasileira na sua totalidade. A nossa sociedade nos seus extratos mais, digamos, “bem-sucedidos”, é uma sociedade nos moldes do que se forjou pelo monoteísmo cristão, nesses contextos talvez seja apropriado falar-se em declínio do Nome-do-Pai, já que seguimos passo a passo as derivas do que acontece nas sociedades marcadas pelo patriarcado. Porém, o fenômeno da racialização atravessa e determina a nossa estrutura de classes, onde se fazem presentes aqueles filhos de sociedades pagãs que nunca se ajustaram aos moldes patriarcais europeus. Pode-se fazer duas formulações verdadeiras, mas contraditórias, tanto dizendo-se (1) que as nossas elites nunca permitiram que, efetivamente, essas pessoas encontrassem o seu lugar na sociedade, limitando, por inúmeros mecanismos racializados, o acesso delas aos modos de vida por ela preconizados, quanto se pode dizer também (2) que essas pessoas, nunca pretenderam de fato recusar as suas origens pagãs, por mais turvas que estas tenham se apresentado no laço social, que de alguma forma, a esclarecer, elas resistiram a essa, digamos, “colonização” nas figuras do negativo que as marginalizavam, e insistiram em traços que mantinham presentes os seus significantes mestres com o custo social que sabemos.
E a reflexão clínica que se abre a partir dessa conjuntura? De uma forma fundada no mal-entendido entre uma clínica da psicose que se funda na foraclusão do Nome-do-Pai e avança para um entendimento do declínio desta operação significante, a clínica que nos ensinou Marcel Czermak e a Escola de Sainte-Anne, e uma clínica que também recolhe inúmeros fenômenos situados no campo da senso-percepção e das afetações no corpo, que repercutem como nas descrições da clínica de Sainte-Anne, mas que não podem ser entendidas como foraclusão do Nome-do-Pai, têm que ser entendidas como referidas a um “sem pai”, ou, melhor, a um “não sem pai”. Até porque muitas dessas manifestações não delimitam uma condição psicótica, ao contrário e muito surpreendentemente, delimitam uma certa “normalidade”, não fosse assim teríamos de admitir o contrassenso de que os nossos “pobres” são psicóticos ou que a pobreza é uma condição psicotizante. Os periféricos, os populares, admitem formas de configurar a relação com o corpo, “estados de alma”, conversas com o além e o outro mundo, que as sociedades patriarcais alijaram, apagaram em prol de uma “domesticação” do real e de uma relação com a alteridade marcada pelo Um na sua morada no céu, quer dizer, na transcendência e, na ciência, na opacidade da letra, na sua relação com a técnica. No caso da clínica do pai temos de pensar a foraclusão do Nome-do-Pai na estipulação de uma psicopatologia das psicoses. Na situação brasileira, marcada pelo “sem pai”, ou o “não sem pai”, sob a exigência de inventar não tanto um pai, mas um terceiro para os seus sujeitos poderem advir, temos que, além de uma psicopatologia, pois esta continua a ser necessária diante das crises que irrompem no laço social, inventar formas de laço nos quais essas pessoas possam, justamente, inventar/nomear as suas condições de assunção como sujeitos, sendo o “coletivo”, a sociabilidade, esse terceiro fértil e possibilitador.
E isto é apenas o começo de uma iniciativa muito mais abrangente para a psicanálise por aqui, quer dizer, apenas colocar a questão. Há muito pouco realizado no sentido do que essa problematização abre, mal começamos a poder situar as respostas dos populares e periféricos como formulações positivas e criativas em face do desafio maior para o falante que é o de estar constituído nas leis da linguagem. Isso sem omitir, ou não podendo deixar de considerar, num outro giro, que, muito provavelmente, o “sem pai” ou o “não sem pai” que atribuí ao popular e ao periférico, também nos defina, nós letrados, tanto ou mais que o europeu, sem que disso nos apercebamos minimamente.
[1]Há vários níveis e orientações desse “progressismo”, desde o racista de embranquecer o Brasil até as formulações mais rentes aos fatos que reconhecem o intrincamento das diferenças.